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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

CERTAME: FAZUNCHAR 2020


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CERTAME: FAZUNCHAR 2020
Figueiró dos Vinhos
15 > 23 Ago 2020


Linguagem exclusivamente oral, utilizada pelos vendedores ambulantes de tecidos da vasta região do Pinhal Interior para comunicar entre si sem que fossem entendidos, o Laínte há muito que caiu em desuso. Dele chegam ecos aos nossos dias sob a forma de palavras soltas que despertam a curiosidade e estimulam a imaginação. Estão neste caso o “artife” e a “loreta”, que designam, respectivamente, o “pão” e a “água”. Da mesma forma estão a “broca”, que no caso é “casa”, a “dronha” que é “dinheiro”, o “ladrilho” que é “ladrão” ou a “pissalta”, na verdade a “rapariga”. Está também “fazunchar”, estranha palavra que ressoa aos ouvidos como se de música se tratasse e que, significando “fazer”, se torna em força motriz de um projecto “onde a arte faz a festa” e que envolve, num abraço, gentes, território, cultura e tradições. Pelo menos em Figueiró dos Vinhos assim é, desde que o Fazunchar aqui assentou arraiais em 2019. Para melhor percebermos o conceito, sigamos os passos da curadora Lara Seixo Rodrigues numa Visita Guiada ao encontro de murais, pinturas de montras, cartazes, concertos, conversas com os artistas e o muito mais que as duas primeiras edições do certame fizeram desabrochar. Mas antes, “jordamos atilém ao cadéfe bercher um moiteira copio?” (“vamos além ao café beber um copo de vinho?”).

Do lado de cá da rua, situa-se o antigo Clube Figueiroense, hoje Casa da Cultura e que foi, ao longo de nove intensos dias, o Quartel-General do Fazunchar. Do outro lado, um pouco abaixo, está o Casulo de Malhoa. Entre os dois edifícios, há toda uma história com mais de um século de existência e memórias que têm a uni-las os pintores José Malhoa e Henrique Pinto e os escultores Simões de Almeida, tio e sobrinho. Esta convergência de nomes, numa terra onde tudo é perto de tudo, faz com que neles tropecemos a cada passo numa visita que teve na pintura de Malhoa, “Clara” (1903), o seu ponto de partida. Não a “Clara”, uma das mais belas obras do naturalismo português e que podemos apreciar no Museu e Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos, ali logo ao lado; mas a “Clara”, do pintor e muralista espanhol Julio Anaya Cabanding, cujo trabalho assenta, em grande medida, na reprodução de quadros célebres em contexto de Arte Urbana, desmistificando a visão de que os “clássicos” apenas aos museus pertencem. Esta ligação a Malhoa irá surgir nos mais diversos contextos e suportes, como é o caso da reinterpretação que seis dos maiores ilustradores nacionais – Ana Seixas, André da Loba, André Letria, Mariana Rio, Margarida Girão e Tiago Galo – fizeram de obras de Malhoa e cujos cartazes, espalhados há um ano pela vila, mantêm um interessante diálogo com os locais ou com o visitante ocasional.

Num sobe e desce constante, enigmáticas ou óbvias na sua toponímia, as ruas, quelhas, vielas e travessas vão-se sucedendo. As peças também. Junto à Torre da Cadeia, os ADAMASTOR trabalham ainda na sua versão da Lenda do Penedo da Trombeta enquanto, um pouco mais abaixo, Mohamed L’Ghacham parece querer-nos dizer que, por detrás da “bárbara” matança do porco, há todo um ritual de união e partilha cuja ancestralidade atesta a sua importância na vida das comunidades mais pequenas. Ali ao lado, Draw & Contra estão a terminar a sua visão de José Malhoa, a partir de um retrato de época que mostra o pintor abrigado do sol por um enorme guarda-chuva, segurando a paleta e os pincéis com a mão esquerda. Dirigindo os nossos passos para a Travessa do Jasmineiro, de onde chegam os acordes musicais que prenunciam o concerto de Surma agendado para essa noite, vemos que Tamara Alves acaba de nos deixar uma ninfa de cores sombrias, inspirada no baixo relevo “As Ninfas do Mondego” (1905), de Simões de Almeida (sobrinho).

Continuando a descer, chegamos ao edifício dos Paços do Concelho, o coração da vila, daí seguindo até ao início da Avenida Padre Diogo de Vasconcelos. Em plena rotunda, os Half Studio deixaram-nos a obra “Para Sempre”, um belo exemplar de “lettering” que, mais do que remeter para o Grupo do Leão, ao qual Malhoa e Henrique Pinto pertenceram, parece funcionar como um incitamento à coragem e à resiliência face aos tempos difíceis que atravessamos. A visita está a chegar ao fim e a interpretação de Aheneah de uma mulher do campo, intitulada “Semear”, vem recordar-nos que tudo começa com uma semente, a qual, lançada apenas no ano passado, prova ser forte e resistente, mostrando já saborosos frutos. Por conta e risco de cada um, importa rumar a poente onde, à entrada da vila, o grego Dmitris Taxis trabalha numa minuciosa reprodução de uma imagem colhida nas Fragas de S. Simão. [Propositadamente, omiti o projecto Lata 65 e a sua ligação à Sebenta da Quarentena, assim como Helen Bur e o seu trabalho, com o qual nos cruzámos algumas vezes ao longo do percurso. Deles irei falar separadamente em próximas crónicas aqui no blogue].

Surma e a sua música hipnotizante tomou conta da noite e escutá-la em sintonia com as intervenções de Tamara Alves no seu mural foi mágico. Nos sonhos de uma noite de verão, os jasmineiros floriram, embalando-nos com o seu perfume e recuperando-nos para um novo dia que se revelou intenso e recheado de belas surpresas. Às 09h30 tinha início a “Rota dos Fregueses”, um passeio em autocarro pelos arredores de Figueiró dos Vinhos que, a par da apreciação do trabalho de quatro artistas convidados que proporcionou, mostrou o quão significativo e enriquecedor pode ser este esforço de descentralização. Na Arega, Doa Oa “reflorestou” de gilbardeiras as paredes do mercado local, trabalhando com enorme detalhe e sensibilidade. Na Aguda, THE CAVER representou a terra e as gentes de forma estilizada, convidando cada visitante a fazer a sua própria interpretação do mural. Em Campelo, Mantraste recuperou histórias em torno dos viveiros de trutas, verdadeira atracção até há muito pouco tempo, realçando a palavra “cuidar”, em contraponto à situação de abandono que se percebe um pouco por todo o lado. Também em Campelo, Helen Bur voltou a mostrar a sua arte e a deixar preciosos apontamentos espalhados pela aldeia A derradeira noite chamou ao Auditório da Biblioteca Municipal de Figueiró dos Vinhos um apreciável número de espectadores que, ao som dos Cassete Pirata e da sua mensagem interventiva, fizeram a festa.

O domingo acordou luminoso e a prometer calor, o que viria a confirmar-se com o avançar do dia. Os nossos passos começaram por nos levar até ao Mercado Municipal de Figueiró dos Vinhos onde, numa das suas paredes exteriores, encontramos afixada uma ampliação do rolo de 7,5 metros, da autoria de Nuno Sarmento onde, num magnífico registo de “urban sketcher”, se conta a história da primeira edição do Fazunchar. Trata-se de um trabalho incrível, que atesta a qualidade do traço do artista e o seu enorme poder de observação, e cujo original pode ser vista na sala de exposições do piso superior do Museu e Centro de Artes. Depois, embarcando num percurso extraordinariamente bem delineado através do centro urbano de Figueiró dos Vinhos, foi tempo de dar “uma volta à vila, à volta dos quatro artistas” que atrás mencionei e descobrir os pormenores que, no fio do tempo, ligam histórias de ontem e de hoje. Uma visita ao Casulo de Malhoa e ao Museu completou o programa cultural de um fim de semana riquíssimo de interesse e conhecimento. Para o fim ficou o Piquenique Comunitário, no espaço refrescante do Jardim Municipal, um tempo feito de partilha que prolongou esta festa das artes e das gentes, cravando-a para sempre nos nossos corações. As últimas palavras são para a alma deste projecto, Lara Seixo Rodrigues e para a Mistaker Maker – Plataforma de Intervenção Artística. Fábrica de ideias em plena laboração vinte e quatro horas por dia, ela tem uma capacidade de organização e de trabalho notável, mostrando na prática o valor da expressão “o céu é o limite”. Para tanto, basta acreditar.

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