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terça-feira, 25 de agosto de 2020

CONCERTO: Surma



CONCERTO: Surma
FAZUNCHAR 2020
Travessa do Jasmineiro, Figueiró dos Vinhos
21 Ago 2020 | sex | 21:30


A noite caiu sobre a vila e os passos das gentes tomaram a direcção da Travessa do Jasmineiro. Na ladeira íngreme, estenderam-se mantas no chão, abriram-se cadeiras de praia, soleiras das portas foram tomadas de assalto e, no empedrado irregular, os menos prevenidos buscaram a posição mais cómoda, sentando-se no chão como podiam. Quando Surma chegou, tirei da mochila o CD, dirigi-me a ela e estendi-o, pedindo-lhe um autógrafo. Da surpresa inicial ao sorriso de satisfação que os olhos deixaram adivinhar foi coisa de segundos. Agradeceu o gesto enquanto lhe dizia que podia escrever apenas “Joaquim”. Agradeceu novamente e, na sua voz de desenho animado, pediu desculpa pela letra “um bocadinho horrível”. E eu ali, “meio burro”, com tanta coisa para lhe dizer e sem dizer coisa nenhuma. Mas digo agora, que mais vale tarde do que nunca!

Conheci Surma e a sua música há dois anos, num parque do centro da cidade de Espinho. Era uma tarde ventosa, como todas as tardes de todos os verões em Espinho. Lembro-me bem da força da sua música, de como me tocou. Há coisas assim, carregadas de emoção, como um quadro de Miró ou um poema de Ana Luísa Amaral. O coração toma conta de nós, estas coisas não se explicam. Na altura, escrevi no blogue que, “duma rapariga que se afirma pessimista, que nunca pensou sair da cave da sua casa de aldeia perto de Leiria e muito menos tocar onde já tocou, o menos que se pode dizer é que o seu projecto é obra. Nesta viagem agora iniciada, é difícil prever o quando e o onde do ponto de chegada, tal o potencial desta música, tal a energia, vontade e entrega de Débora Umbelino à sua 'causa'. Entretanto, aproveitem-se os portos de escala. Espinho foi um desses portos, da visita sobrando a vontade de saber mais, de escutar mais, de sentir mais.”

A vontade de “saber mais, de escutar mais, de sentir mais” foi sendo satisfeita pelas vezes sem conta em que passei “Antwerpen” no leitor do carro ou da sala. Na música de Surma escuto a surda e lenta agonia de um glaciar, o mar a desfazer-se de encontro às rochas, o nevoeiro que envolve a floresta, o murmúrio gutural da primeira palavra alguma vez proferida pelo Homem, a chuva incessante que cai sobre um tapete de folhas mortas ou os sons que, vindos do espaço, nos dizem que a vida não é exclusiva deste planeta cada vez menos azul. O concerto de Surma, na passada sexta feira em Figueiró dos Vinhos, veio confirmar esta profunda relação entre a sua música e a matéria de que somos feitos. Entre uma corda que vibra e o ar que se condensa ou a água que se despenha das fragas. Entre um grito que se desfaz e a terra ressequida ou o fogo que tudo destrói à sua passagem. Uma música cósmica que, não nos dizendo para onde vamos, nos mostra de onde viemos.

Surma esteve em Figueiró dos Vinhos a convite do FAZUNCHAR. Do curto tempo de uma Residência Artística que partilhou com a muralista Tamara Alves, da inspiração que colheu de uma verdadeira “ninfa”, resultaram cinco peças de enorme beleza, mesmo que “ainda muito cruas”, que a compositora e intérprete fez questão de partilhar com o público. Fê-lo ao mesmo tempo que Tamara trabalhava no seu mural, numa simbiose perfeita entre som e imagem, luz e trevas, yin e yang. O resto do concerto deu-nos a possibilidade de reviver “Hemma”, “Kismet” e “Voyager”, do já referido “Antwerpen”, mas também de recordar “Maasai” ou “Wanna be Basquiat”, dois trabalhos do início de carreira da cantora. Hipnotizante, mágico, “Nyika” foi o final perfeito de uma noite memorável. Que mais concertos destes possam acontecer. Eu quero estar lá!

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