CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #37
Escola de Artes e Ofícios
90 Minutos | Maiores de 16 anos
02 Jul 2020 | qui | 22:00
Entre um vírus que teima em brincar às escondidas e em manter a palavra “planalto” na ordem do dia e a crença no desconfinamento possível, no estrito respeito pelas normas de segurança impostas pelas autoridades de saúde, prosseguiu na noite de ontem a quarta temporada do Shortcutz Ovar com a realização da 37ª sessão. De novo no belíssimo espaço da Escola de Artes e Ofícios e sempre com apresentação de Tiago Alves, as curtas-metragens exibidas tiveram na relação entre as pessoas e o espaço que as rodeia o seu denominador comum. Uma sessão onde a arquitectura se passeou de mãos dadas com o cinema, levando no seu encalce a mensagem ambiental e os problemas sociais e que conseguiu prender a atenção de um público exigente e conhecedor que voltou a esgotar a lotação da sala.
Tal como na sessão anterior, o cinema de animação voltou a estar em foco e a abrir as hostilidades com a apresentação do filme de Bruno Caetano, “O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto”. Adaptado de um conto original de Manuel Ruas Moreira, o filme fala-nos de um mundo distópico que vive praticamente sem água e onde as flores e os pássaros quase só existem na memória dos mais antigos. É aqui que entra o Sr. Jacinto, um simpático velhote, saudosista e sonhador, que um dia “tropeça” numa planta e decide desafiar a ordem estabelecida. Filmado em stop motion, essa técnica fascinante que remete de imediato para os filmes da série “Wallace and Gromit” ou para o marcante “A Fuga das Galinhas”, “O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto” é uma pequena pérola da animação portuguesa, cuja mensagem ambiental se torna mais clara e acutilante em tempos de pandemia. O fascínio de Bruno Caetano pelo lado artesanal da animação percebe-se não apenas no cuidado posto na manipulação dos objectos, mas também nos adereços, nos cenários à escala – a marioneta do Sr. Jacinto, por exemplo, não ultrapassa os 16 cm de altura – e no bom gosto da música que acompanha o filme, da autoria do pianista e compositor Filipe Raposo. Uma última nota para a narração, de Sérgio Godinho, a cereja no topo do delicioso bolo que é esta curta de animação.
O segundo filme da noite foi rodado nas montanhas de Hollywood e é um trabalho de tese de Francisco Pereira Coutinho na prestigiada Loyola Marymount University de Los Angeles. Focando a sua atenção na estranha relação de um casal de meia idade, o filme está repleto de contrastes, ambiguidades e segundos sentidos, começando no título e estendendo-se aos recantos duma “casa-estufa”, ao viço das flores, ao colorido das roupas e, em última análise, ao espaço privado das fantasias sexuais, onde o real e o imaginário se misturam e confundem. Filmado em película de 16 mm e com um excelente desempenho de Hayley J. Williams no papel de Ella, “A Greenhouse” revela um nível técnico notável, assente na extraordinária fotografia de Oscar Martinez. Refractário ao imediatismo e apostado em desafiar convencionalismos, este é um filme que prefere colocar questões em vez de apontar respostas. “A Greenhouse” – que passou em Ovar em estreia absoluta a nível mundial - tem essa extraordinária virtude de obrigar o espectador a pensar e a desvendar por si mesmo os mundos que se escondem em cada plano. Estamos perante um filme que é tudo menos fácil, mas esse é um risco que Francisco Pereira Coutinho aceitou correr. A julgar pela ovação e pela qualidade das questões colocadas no final ao realizador, o público de Ovar soube reconhecer os seus méritos, aclamando-o na justa medida dos seus pressupostos e ambições.
Para o final, o programador deixou-nos com “Filomena”, um filme de Pedro Cabeleira e que resultou de uma encomenda da Trienal de Arquitectura de Lisboa. Elevados à categoria de actores, a Estação Marítima do Terreiro do Paço, uma casa em Telheiras, um centro de meditação, um local de culto, um bar e um prédio em construção na Fontes Pereira de Melo, competem com actores de carne e osso, Sandra Hung à cabeça de todos, desempenhando de forma notável o papel de Filomena, empregada de limpezas para quem a vida é sinónimo de trabalho e desencanto. É notável a forma como este jovem realizador conjuga a “obrigação” com a “devoção”, o fio narrativo a ligar os espaços da Trienal através de uma história fortíssima nas questões sociais que levante e na linguagem que assume. Mérito também para o trabalho de fotografia da jovem realizadora Leonor Teles, o cuidado com a luz e o rigor dos enquadramentos a pedir meças a qualquer projecto de arquitectura. Se mais provas fossem necessárias, “Filomena” está aí como a demonstração clara de que o cinema novo português existe, está de muito boa saúde e recomenda-se!
Escola de Artes e Ofícios
90 Minutos | Maiores de 16 anos
02 Jul 2020 | qui | 22:00
Entre um vírus que teima em brincar às escondidas e em manter a palavra “planalto” na ordem do dia e a crença no desconfinamento possível, no estrito respeito pelas normas de segurança impostas pelas autoridades de saúde, prosseguiu na noite de ontem a quarta temporada do Shortcutz Ovar com a realização da 37ª sessão. De novo no belíssimo espaço da Escola de Artes e Ofícios e sempre com apresentação de Tiago Alves, as curtas-metragens exibidas tiveram na relação entre as pessoas e o espaço que as rodeia o seu denominador comum. Uma sessão onde a arquitectura se passeou de mãos dadas com o cinema, levando no seu encalce a mensagem ambiental e os problemas sociais e que conseguiu prender a atenção de um público exigente e conhecedor que voltou a esgotar a lotação da sala.
Tal como na sessão anterior, o cinema de animação voltou a estar em foco e a abrir as hostilidades com a apresentação do filme de Bruno Caetano, “O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto”. Adaptado de um conto original de Manuel Ruas Moreira, o filme fala-nos de um mundo distópico que vive praticamente sem água e onde as flores e os pássaros quase só existem na memória dos mais antigos. É aqui que entra o Sr. Jacinto, um simpático velhote, saudosista e sonhador, que um dia “tropeça” numa planta e decide desafiar a ordem estabelecida. Filmado em stop motion, essa técnica fascinante que remete de imediato para os filmes da série “Wallace and Gromit” ou para o marcante “A Fuga das Galinhas”, “O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto” é uma pequena pérola da animação portuguesa, cuja mensagem ambiental se torna mais clara e acutilante em tempos de pandemia. O fascínio de Bruno Caetano pelo lado artesanal da animação percebe-se não apenas no cuidado posto na manipulação dos objectos, mas também nos adereços, nos cenários à escala – a marioneta do Sr. Jacinto, por exemplo, não ultrapassa os 16 cm de altura – e no bom gosto da música que acompanha o filme, da autoria do pianista e compositor Filipe Raposo. Uma última nota para a narração, de Sérgio Godinho, a cereja no topo do delicioso bolo que é esta curta de animação.
O segundo filme da noite foi rodado nas montanhas de Hollywood e é um trabalho de tese de Francisco Pereira Coutinho na prestigiada Loyola Marymount University de Los Angeles. Focando a sua atenção na estranha relação de um casal de meia idade, o filme está repleto de contrastes, ambiguidades e segundos sentidos, começando no título e estendendo-se aos recantos duma “casa-estufa”, ao viço das flores, ao colorido das roupas e, em última análise, ao espaço privado das fantasias sexuais, onde o real e o imaginário se misturam e confundem. Filmado em película de 16 mm e com um excelente desempenho de Hayley J. Williams no papel de Ella, “A Greenhouse” revela um nível técnico notável, assente na extraordinária fotografia de Oscar Martinez. Refractário ao imediatismo e apostado em desafiar convencionalismos, este é um filme que prefere colocar questões em vez de apontar respostas. “A Greenhouse” – que passou em Ovar em estreia absoluta a nível mundial - tem essa extraordinária virtude de obrigar o espectador a pensar e a desvendar por si mesmo os mundos que se escondem em cada plano. Estamos perante um filme que é tudo menos fácil, mas esse é um risco que Francisco Pereira Coutinho aceitou correr. A julgar pela ovação e pela qualidade das questões colocadas no final ao realizador, o público de Ovar soube reconhecer os seus méritos, aclamando-o na justa medida dos seus pressupostos e ambições.
Para o final, o programador deixou-nos com “Filomena”, um filme de Pedro Cabeleira e que resultou de uma encomenda da Trienal de Arquitectura de Lisboa. Elevados à categoria de actores, a Estação Marítima do Terreiro do Paço, uma casa em Telheiras, um centro de meditação, um local de culto, um bar e um prédio em construção na Fontes Pereira de Melo, competem com actores de carne e osso, Sandra Hung à cabeça de todos, desempenhando de forma notável o papel de Filomena, empregada de limpezas para quem a vida é sinónimo de trabalho e desencanto. É notável a forma como este jovem realizador conjuga a “obrigação” com a “devoção”, o fio narrativo a ligar os espaços da Trienal através de uma história fortíssima nas questões sociais que levante e na linguagem que assume. Mérito também para o trabalho de fotografia da jovem realizadora Leonor Teles, o cuidado com a luz e o rigor dos enquadramentos a pedir meças a qualquer projecto de arquitectura. Se mais provas fossem necessárias, “Filomena” está aí como a demonstração clara de que o cinema novo português existe, está de muito boa saúde e recomenda-se!
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