LIVRO: "Todos os Dias Morrem Deuses",
de António Tavares
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Abril de 2017
“Ao fim da segunda linha já ninguém queria saber exactamente como estava o velho líder, companheiro de Lenine. A verdadeira questão era perceber como se processaria a sua substituição e se isso agravaria a perseguição aos judeus que se vinha fazendo em todos os países do bloco comunista. A Yugopress, de Belgrado, lembrava que Estaline enterrara as conquistas da Revolução de Outubro, um símbolo da ameaça contra a paz mundial como criador de um bloco agressivo. De Londres, alguém perguntava o que muitos ainda não tinham questionado: teria sido Vissarionovitch vítima dos batas brancas que estava a tentar castigar?”
Se mais nada de importante tivesse sucedido, a morte do líder soviético Josef Stalin, a 5 de Março, e a ascensão ao poder de Nikita Khrushchev, nomeado chefe do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética em 07 de Setembro, seriam suficientes para colocar o ano de 1953 entre os mais relevantes do período pós II Guerra Mundial. Mas esse foi, também, o ano da tomada de posse de Dwight D. Eisenhower como o 34º Presidente dos Estados Unidos da América, da escolha do marechal Josip Broz Tito como Presidente da Jugoslávia ou da coroação de Isabel II como Rainha de Inglaterra. Ethel e Julius Rosemberg eram acusados de espionagem e executados ao pôr do sol do dia 19 de Junho, na prisão de Sing Sing, em Nova Iorque. Entretanto, a Guerra da Coreia chegava ao fim, mas o clima de Guerra Fria intensificava-se e as movimentações políticas, com ameaças de parte a parte, deixavam tudo e todos em sobressalto. Por cá, um discreto jornalista acompanhava os acontecimentos da única forma possível, dando eco dos vários desenvolvimentos num jornal da capital.
António Tavares regressa aos seus tempos de jornalista, oferecendo-nos um relato delicado da profissão em tempos de ditadura. Nele, o jornalista é apresentado como alguém que detém o poder de tomar nota dos acontecimentos em primeira mão, sendo responsável pela sua difusão no estrito respeito pela ética e pelo rigor. No caso particular do jovem jornalista que serve de fio condutor à acção de “Todos os Dias Morrem Deuses”, porém, este rigor é relativo, a escassez de informação, o descrédito das fontes e uma imaginação delirante a transformarem meras hipóteses em certezas absolutas. De notícia em notícia, o leitor é convidado a acompanhar as diatribes da profissão, a mergulhar nos seus lados menos conhecidos, a conviver com o lápis azul da censura, a ver o quanto de criatividade e improviso há no dia a dia de um jornal e a perceber essa estranha coabitação entre a política internacional e os desvarios da moda, os casos do dia e a publicidade, os escândalos da sociedade e a necrologia.
Ternura e humor, combinados e em doses generosas, são marcas importantes de um livro que, sem a profundidade dessa obra maior que é “O Coro dos Defuntos”, Prémio Leya em 2015, ou a acutilância de “Homens de Pó”, o mais recente romance do autor, tem o mérito de nos dar a ver os pequenos nadas de que são feitas as nossas vidas. Zé Ninguém a quem a sorte madrasta fez com que a profissão de jornalista se atravessasse no seu caminho, o herói do livro mostra-se naquilo que de mais humano pode haver em cada um de nós: As contrariedades da vida compensadas pelos pequenos prazeres, a vaidade apimentada no risco calculado, o amor próprio alicerçado nas pequenas conquistas, as dúvidas arrastadas numa inquebrantável fuga para a frente. Veladamente, mediante uma escrita delicada e sensível, aquilo que António Tavares nos vem dizer com este livro é que, nos antípodas dos grandes estadistas, é na figura dos pequenos homens deste mundo que descobrimos a nossa verdadeira dimensão.
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