CONCERTO: “Salvador Sobral canta
Brel”
Teatro Aveirense
10 Fev 2020 | seg | 21:30
Coimbra, 9 de Outubro de 1978 –
Morreu Jacques Brel. E estão de luto todos aqueles que sabiam que
ele dizia mais aos homens com os seus versos truculentos e as suas
canções dilaceradas do que muitos poetas laureados com os seus
poemas herméticos. Trovador dos nossos dias, a ganir por não ser
amado à altura a que pôs o amor, e a amar Deus na pele do Diabo,
foi uma das raras encarnações raivosas do artista empenhado em
reflectir o mundo inteiro no espelho da sua própria aflição. E
conseguiu-o. Não é apenas um tal, de fisionomia tal e vida tal, que
ouvimos quando canta. É uma alma penada em carne viva a penar por
todos nós.
Miguel Torga, in “Diário XIII”
Quebrando ligeiramente o protocolo,
despacho já a questão da apresentação do excepcional naipe de músicos que
acompanharam Salvador Sobral nesta série de três concertos que teve
início na passada sexta-feira no CCB, em Lisboa, prosseguiu no dia
seguinte no Porto, na Casa da Música, e veio a terminar na noite de
ontem, num Teatro Aveirense tornado mais acolhedor porque
completamente lotado. Samuel Lercher (piano e moog), Nelson Cascais
(contrabaixo e baixo eléctrico), Joel Silva (bateria), André Santos
(guitarra e cordofones madeirenses), Inês Vaz (acordeão), Diogo
Duque (trompete, fliscorne e flauta transversal) e Ana Cláudia
Serrão (violoncelo) foram o suporte perfeito para a voz de um
Salvador Sobral cada vez mais inteiro em palco, mais contido e mais
profundo. Mais artista. Essa foi uma das marcas distintivas do
concerto no Aveirense, num tributo sincero e sentido ao músico
belga, sem qualquer propósito de querer imitar ou plagiar, antes de
partilhar com o público a descoberta da beleza da música e dos poemas de Jacques
Brel.
“J'arrive j'arrive / Mais qu'est-ce
que j'aurais bien aimé / Encore une fois remplir d'étoiles / Un
corps qui tremble et tomber mort / Brulê d'amour le cœur en cendres”. “J'arrive” foi a primeira das músicas escutadas e, com ela,
percebeu-se logo que a noite seria sempre curta, porque demasiado
bela. “De crisântemos em crisântemos”, Sobral acenou-nos pela
primeira vez com palavras carregadas de amor e que viriam a
repetir-se e repetir-se até o coração não poder mais. Na amargura de “Quand On A Que L'amour” ou na boémia de “Les Paumés Du Petit
Matin”, na contemplação de “Isabelle” ou na nostalgia de “Le
Moribond”, é no amor vivido que a música adquire força e ganha
sentido, Sobral a mostrar-se à altura das exigências e a superar-se
depois em “Les Bonbons”, emprestando o gesto à voz e
oferecendo-nos um hino terno e triste que nos devolve o sonho e as
ilusões de um primeiro amor.
“Les bourgeois c'est comme les
cochons / Plus ça devient vieux plus ça devient bête / Les
bourgeois c'est comme les cochons /Plus ça devient vieux plus ça
devient...”. Antes de uma pausa para mudança de cenário, ainda
houve tempo de escutar essa feroz crítica social que “Les
Bourgeois” encerra, assim como a exaltação do amor de “Mathilde”.
Já só com Salvador Sobral e a acordeonista Inês Vaz em palco, veio
o incontornável “Amsterdam”, verdadeiro ícone da chanson
française, um poema que devia ser obrigatório saber de cor.
Seguiu-se “Vesoul” - com dedicatória “às mulheres que mandam
sempre e elas é que sabem e aos maridos que pensam que têm uma
opinião mas acabam sempre por fazer o que as mulheres querem” - e
outra crítica social amarga com “Ces Gens-Là”. A banda volta a
reunir-se, os músicos ocupam de novo os seus lugares e chega (credo,
que palavra tão feia) “Bruxelles”, logo seguida do delicado e
imensamente belo “La Chanson Des Vieux Amants”, Brel a escutar-se
em fundo - “La fidelité de certains hommes vis à vis d'autres
hommes, ça, ça m'émeut aux larmes. Ça m'émeut aux larmes!
J'trouve ça beau, j'trouve ça noble, j'trouve ça três supérieur
à tous les autres sentiments.” -, o mais longo aplauso a coroar a
mais bela passagem da noite.
O concerto caminha para o final e,
antes ainda de Salvador Sobral “acusar o toque” e revelar a sua
tristeza pelo fechar de mais um curto mas intenso ciclo, o público
pode escutar “Jef”, a prova de uma bela amizade quando o amor
acaba e o coração se desfaz em grossas lágrimas, e “La Chanson
de Jacky”, alegre e libertária. O “encore”, intenso e
generoso, trouxe o poema e os acordes mais esperados da noite: “Ne
Me Quitte Pas” foi dor e emoção, despojamento e silêncio,
sentimento e exaltação, Sobral a mostrar-se mais verdadeiro que
nunca e, humilde e frágil, a suplantar muitas das versões deste
hino conhecidas, de Nina Simone a Maria Gadú, de Celine Dion ao
nosso Carlos do Carmo. “Au Suivant” espalhou pela sala uma
ambiência de bistrôt, salutarmente impúdica, tudo acabando da
melhor forma com “Madeleine”, o cantor a invadir a plateia,
megafone na mão, palmas a compasso, a palavra viva a
ecoar na sala: “Elle est tellement jolie / Elle est tellement tout
ça / Elle est toute ma vie / Madeleine que j'attends”. É de
coração cheio que se sai de um concerto assim. A palavra, a voz, o
momento, são de festa e de júbilo. Jacques Brel vive!
[Foto: Júlia Oliveira |
glam-magazine.pt]
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