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terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

CONCERTO: Salvador Sobral canta Brel



CONCERTO: “Salvador Sobral canta Brel”
Teatro Aveirense
10 Fev 2020 | seg | 21:30


Coimbra, 9 de Outubro de 1978 – Morreu Jacques Brel. E estão de luto todos aqueles que sabiam que ele dizia mais aos homens com os seus versos truculentos e as suas canções dilaceradas do que muitos poetas laureados com os seus poemas herméticos. Trovador dos nossos dias, a ganir por não ser amado à altura a que pôs o amor, e a amar Deus na pele do Diabo, foi uma das raras encarnações raivosas do artista empenhado em reflectir o mundo inteiro no espelho da sua própria aflição. E conseguiu-o. Não é apenas um tal, de fisionomia tal e vida tal, que ouvimos quando canta. É uma alma penada em carne viva a penar por todos nós.
Miguel Torga, in “Diário XIII”

Quebrando ligeiramente o protocolo, despacho já a questão da apresentação do excepcional naipe de músicos que acompanharam Salvador Sobral nesta série de três concertos que teve início na passada sexta-feira no CCB, em Lisboa, prosseguiu no dia seguinte no Porto, na Casa da Música, e veio a terminar na noite de ontem, num Teatro Aveirense tornado mais acolhedor porque completamente lotado. Samuel Lercher (piano e moog), Nelson Cascais (contrabaixo e baixo eléctrico), Joel Silva (bateria), André Santos (guitarra e cordofones madeirenses), Inês Vaz (acordeão), Diogo Duque (trompete, fliscorne e flauta transversal) e Ana Cláudia Serrão (violoncelo) foram o suporte perfeito para a voz de um Salvador Sobral cada vez mais inteiro em palco, mais contido e mais profundo. Mais artista. Essa foi uma das marcas distintivas do concerto no Aveirense, num tributo sincero e sentido ao músico belga, sem qualquer propósito de querer imitar ou plagiar, antes de partilhar com o público a descoberta da beleza da música e dos poemas de Jacques Brel.

“J'arrive j'arrive / Mais qu'est-ce que j'aurais bien aimé / Encore une fois remplir d'étoiles / Un corps qui tremble et tomber mort / Brulê d'amour le cœur en cendres. “J'arrive” foi a primeira das músicas escutadas e, com ela, percebeu-se logo que a noite seria sempre curta, porque demasiado bela. “De crisântemos em crisântemos”, Sobral acenou-nos pela primeira vez com palavras carregadas de amor e que viriam a repetir-se e repetir-se até o coração não poder mais. Na amargura de “Quand On A Que L'amour” ou na boémia de “Les Paumés Du Petit Matin”, na contemplação de “Isabelle” ou na nostalgia de “Le Moribond”, é no amor vivido que a música adquire força e ganha sentido, Sobral a mostrar-se à altura das exigências e a superar-se depois em “Les Bonbons”, emprestando o gesto à voz e oferecendo-nos um hino terno e triste que nos devolve o sonho e as ilusões de um primeiro amor.

“Les bourgeois c'est comme les cochons / Plus ça devient vieux plus ça devient bête / Les bourgeois c'est comme les cochons /Plus ça devient vieux plus ça devient...”. Antes de uma pausa para mudança de cenário, ainda houve tempo de escutar essa feroz crítica social que “Les Bourgeois” encerra, assim como a exaltação do amor de “Mathilde”. Já só com Salvador Sobral e a acordeonista Inês Vaz em palco, veio o incontornável “Amsterdam”, verdadeiro ícone da chanson française, um poema que devia ser obrigatório saber de cor. Seguiu-se “Vesoul” - com dedicatória “às mulheres que mandam sempre e elas é que sabem e aos maridos que pensam que têm uma opinião mas acabam sempre por fazer o que as mulheres querem” - e outra crítica social amarga com “Ces Gens-Là”. A banda volta a reunir-se, os músicos ocupam de novo os seus lugares e chega (credo, que palavra tão feia) “Bruxelles”, logo seguida do delicado e imensamente belo “La Chanson Des Vieux Amants”, Brel a escutar-se em fundo - “La fidelité de certains hommes vis à vis d'autres hommes, ça, ça m'émeut aux larmes. Ça m'émeut aux larmes! J'trouve ça beau, j'trouve ça noble, j'trouve ça três supérieur à tous les autres sentiments.” -, o mais longo aplauso a coroar a mais bela passagem da noite.

O concerto caminha para o final e, antes ainda de Salvador Sobral “acusar o toque” e revelar a sua tristeza pelo fechar de mais um curto mas intenso ciclo, o público pode escutar “Jef”, a prova de uma bela amizade quando o amor acaba e o coração se desfaz em grossas lágrimas, e “La Chanson de Jacky”, alegre e libertária. O “encore”, intenso e generoso, trouxe o poema e os acordes mais esperados da noite: “Ne Me Quitte Pas” foi dor e emoção, despojamento e silêncio, sentimento e exaltação, Sobral a mostrar-se mais verdadeiro que nunca e, humilde e frágil, a suplantar muitas das versões deste hino conhecidas, de Nina Simone a Maria Gadú, de Celine Dion ao nosso Carlos do Carmo. “Au Suivant” espalhou pela sala uma ambiência de bistrôt, salutarmente impúdica, tudo acabando da melhor forma com “Madeleine”, o cantor a invadir a plateia, megafone na mão, palmas a compasso, a palavra viva a ecoar na sala: “Elle est tellement jolie / Elle est tellement tout ça / Elle est toute ma vie / Madeleine que j'attends”. É de coração cheio que se sai de um concerto assim. A palavra, a voz, o momento, são de festa e de júbilo. Jacques Brel vive!

[Foto: Júlia Oliveira | glam-magazine.pt]

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