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sábado, 30 de março de 2024

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #80



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #80
Apresentação | Tiago Alves
Com | Rúben Sevivas, André Guiomar, Diogo S. Figueira
Escola de Artes e Ofícios
150 Minutos | Maiores de 14 anos
28 Mar 2024 | qui | 21:30


Os amantes do cinema, que têm no Shortcutz Ovar uma das suas mais importantes referências, voltaram à Escola de Artes e Ofícios para o habitual convívio das últimas quintas-feiras do mês. Antes mesmo de Tiago Alves abrir as hostilidades desta segunda sessão da nova temporada, já a maior parte dos espectadores notava a diferença em termos do conforto que uma almofada no assento das cadeiras pode acrescentar. Num espaço de culto do cinema português em versão curta, este foi um muito apreciado “upgrade”, ao qual se junta a novidade da criação de um podcast mensal sobre cada uma das sessões, da autoria de Francisco Fidalgo, com o apoio da Rádio AVFM, e ainda o anúncio da exibição de “Revolução (sem) Sangue” na próxima sessão do certame, uma longa-metragem de Rui Pedro Sousa em estreia nacional, a ter lugar no Centro de Artes de Ovar, no próximo dia 11 de Abril. Quanto aos filmes exibidos, a intenção dos programadores em apresentar “narrativas que têm a ver com a fé, o dogma, relações humanas, arrependimentos…” veio ao encontro da quadra que atravessamos e os filmes, como veremos, abriram espaço à reflexão e à discussão em torno do sagrado e do profano, do corpóreo e do espiritual.

O primeiro filme exibido, “Flor de Laranjeira”, marcou o regresso a Ovar de Rúben Sevivas. À semelhança dos anteriores “Direito à Memória” e “Sobrevoo”, o realizador trouxe-nos um documentário emotivo que homenageia a figura da avó Isabel (1925 - 2020), “mãe solteira nos anos 50, em plena ditadura”, numa aldeia remota de Trás-os-Montes, com a qual Sevivas se identifica duma forma muito particular. No seu regresso a Soutelo e aos lugares da memória, “para o nº 14 da Rua da Laranjinha”, o realizador mostra que os funerais não são momentos de despedida, lembrando que “as despedidas se vão fazendo com o tempo”. Exercício catártico por natureza, as palavras da avó surgem-nos de forma espontânea e livre, evocando essa relação de afecto num momento de particular fragilidade, o olhar do realizador a pousar sobre os móveis, as fotografias, os quadros, como se de naturezas-mortas se tratasse, prontas para serem passadas à tela de forma impressiva. Filme de uma avó com muitas avós dentro, “Flor de Laranjeira” mergulha nessa “guerra ao Sol” que é a intimidade das relações familiares, a emoção a tomar conta da narrativa e a fazer das fraquezas forças.

Também André Guiomar fez da sua presença na Escola de Artes e Ofícios um regresso, depois de aqui ter estado pela última vez em Março de 2020, quando o seu “Pele de Luz”, documentário sobre a discriminação a que duas irmãs albinas são votadas em Maputo, recebeu o Prémio Especial do Júri na Festa dos Premiados 2019. Desta vez, Guiomar trouxe-nos “Espinho”, um filme com a chancela “The Factory”, organizado pela Quinzena dos Realizadores do Festival de Cinema de Cannes e co-realizado com a israelita Mya Kaplan. Falando da relação de um adolescente, Téo, com o novo pároco da aldeia, o filme aborda questões de enorme complexidade, nomeadamente aquelas que se insinuam no sempre conturbado período da adolescência, no celibato dos padres, nas abjecções da pedofilia ou na relação “padre-pai” em meios fechados. Cientes da dimensão trágica do número de abusos sexuais na Igreja Católica em Portugal, os espectadores são tomados pelo desconforto desde o primeiro instante, confrontado-se com uma narrativa que sugere mais do que mostra, num jogo intenso entre a certeza e a dúvida, o diálogo e os silêncios, o terreno e o divino.

A fechar a sessão, “Sagrada Família”, primeira obra do realizador Diogo S. Figueira, trouxe-nos a história de Adelaide, uma freira recentemente excomungada e que se vê obrigada a regressar a uma vida que inclui Salomé, a filha da qual se afastou quando a sua fé falou mais alto. Jogando no dilema entre a reconciliação familiar e a reconciliação com a Igreja, o filme dá-nos a ver a verdade da carne de que somos feitos nesse diálogo constante com a dimensão espiritual de cada um. É um filme de uma rara sensibilidade, que traz para o interior das suas fronteiras a luta entre Deus e o diabo - genial a visão de uma Nossa Senhora de mãos postas, “a bater palmas” -, deixando ao espectador a tarefa de estabelecer os seus próprios julgamentos. Superlativa, a interpretação de Teresa Sobral responde da melhor forma à figura de uma freira presa pela dúvida, contribuindo decisivamente para a imagem de verdade que o filme pretende passar. Outro aspecto a valorizar prende-se com o trabalho de Tomé Palmeirim em matéria de som, naquilo que é do melhor que temos apreciado a este nível. Um filme que fala de vocação e que, entre o palpável e o etéreo, rematou da melhor forma um belo serão.

sexta-feira, 6 de maio de 2022

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #60



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #60
Escola de Artes e Ofícios
135 minutos | Maiores de 14 anos
05 Mai 2022 | qui | 21:30


Sem máscaras. Foi desta forma, espalhando sorrisos, que (quase todos) os “suspeitos do costume” se apresentaram na Escola de Artes e Ofícios, para assistir àquela que foi a terceira sessão da sexta temporada do Shortcutz Ovar. Após vinte e duas sessões vividas sob o peso das máscaras, a normalidade está de regresso, conforme salientou Tiago Alves, programador e apresentador destas noites imperdíveis, também ele de cara descoberta, a máscara do “puto vírus” deixada em casa. Mas se na plateia o público dizia adeus às máscaras, na tela a pandemia fazia-se notar de forma evidente, mostrando até que ponto pode ser causa e efeito de um objecto fílmico. Salvaguardando diferenças de género e de estilo, foi assim com as três curtas-metragens apresentadas, todas elas histórias na primeira pessoa, circunspectas, ponderadas, com uma forte ligação a um momento de distanciamento e clausura, reflectindo a forma como fomos obrigados a equacionar o mundo em que vivemos e o nosso posicionamento face aos outros e a nós mesmos.

Começando pela última curta da noite, “Fora de Jogo” fez-nos mergulhar na história de Leonardo, um jovem que sofre a desaprovação da tia na busca do sonho de ser jogador de futebol. Contando com uma bela interpretação de João Cravo Cardoso, o filme tem fortes ressonâncias pessoais, espelhando a experiência traumática do realizador José Freitas quando, aos 13 anos, também quis ser jogador de futebol e seu viu confrontado com uma nega para a aquisição de um par de chuteiras. Nesta que é a sua primeira obra, o realizador representa aqueles cujos sonhos não são convencionais e ainda vivem num ambiente que descredibiliza estas ambições como sendo utopias, não enquadráveis nos objetivos conservadores tradicionais que o seu meio abraça. Em equilíbrio sobre a ténue linha que distingue a realidade da ficção, “Fora de Jogo” não pode deixar de ser encarado como uma catarse, libertando o autor do peso da rejeição e ajudando-o a transformar as dúvidas em certezas.

“Fruto do Vosso Ventre” foi o primeiro filme da noite e causou no público um fortíssimo impacto. Ao longo de 20 minutos, o realizador Fábio Silva passa em revista as suas quase três décadas de vida, marcadas por uma relação conflituosa com o pai. Trata-se de um “filme familiar”, se considerado de um ponto de vista lato, do qual a dimensão celebratória está ausente. O filme adquire, então, um cunho pessoal intenso e denso, transformando-se numa “carta ao pai”, acusadora e condenatória, carregada de amargura e desencanto. É um filme com uma força interior invulgar, despojado na forma como a intimidade é exposta, feito de coragem e determinação. Um filme que pode, nas suas várias leituras, ser apreciado numa dimensão catártica, visto como uma lição ou um exemplo, ou partir ao encontro das questões da diáspora ao centrar-se numa família cabo-verdiana cujos valores tradicionais foram preteridos em favor de processos de assimilação à nova realidade da vida num bairro social dos arredores de Lisboa.

Propositadamente, deixo para o final “Sobrevoo”, filme que trouxe de novo a Ovar o flaviense Rúben Sevivas, depois de aqui ter apresentado, em 2020, “Direito à Memória”. Assumido como um “auto-retrato”, espécie de confissão emocional e testemunho de um período particularmente duro da nossa história recente, “Sobrevoo” tem esse dom de nos tocar pela sua verdade e intensidade, de nos fazer reflectir na forma como encaramos a adversidade e nas ferramentas de que dispomos para as ultrapassar. Este jovem que vive sozinho, que tem contas por pagar e comida para pôr na mesa, que se vê a braços com a precariedade e as incertezas e que, no meio de tudo isto, tem em mãos um filme que precisa de acabar, é o exemplo de muitos jovens (e menos jovens) que tentam manter-se à tona no meio de incertezas e frustrações e que vão resistindo à tentação de baixar os braços. Rúben Sevivas personifica a coragem de virar a página do passado e começar tudo de novo. Rodado em plena quarentena, no curto espaço de uma semana, este é um filme intemporal e que conta com um extraordinário actor, Rúben Sevivas, precisamente. O mesmo que não desiste. E que continua a fazer excelente cinema!

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

CINEMA: Shortcutz Ovar 2020 | Sessão #40



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #40
Escola de Artes e Ofícios
90 Minutos | Maiores de 16 anos
01 Out 2020 | qui | 22:00


Após dois meses de ausência para umas retemperadoras e merecidas férias, a quarta temporada do Shortcutz Ovar voltou a marcar presença no belíssimo espaço da Escola de Artes e Ofícios, ao encontro de um público saudoso das emoções do formato curto e dos momentos de partilha que as conversas com os agentes de cinema sempre proporcionam. De regresso a uma casa que fez questão de chamar sua – “é aqui que me sinto em casa”, disse -, Tiago Alves voltou a conduzir brilhantemente a “soirée”, trazendo com ele uma convidada especial, Ana Rocha de Sousa, e fazendo a ponte entre a cidade-museu do azulejo e a bela Veneza, em cuja Mostra a cineasta foi muito feliz há um par de dias, arrecadando de uma assentada seis prémios com “Listen”, a sua primeira longa-metragem. Mas os aliciantes desta noite de cinema não se quedavam por aqui, com Rúben Sevivas e Welket Bungué a apresentarem os seus filmes em competição e a fazerem adivinhar um serão “quente”, sobretudo pela mensagem política que unia os trabalhos e se afirmava como o fio condutor desta sessão. E na verdade assim foi, o debate em torno de questões fracturantes da nossa sociedade a impor-se de forma emotiva e a prender o público ao longo de quase quatro horas.

“Todos nós, cidadãos pacíficos duma candidatura pacífica, queremos pacificamente conquistar a paz. Mas os esbirros do governo, como têm visto, andam a chamar-nos subversivos nos jornais e a tratar-nos na via pública como malfeitores. Ninguém sabe, portanto, minhas senhoras e meus senhores, onde isto pode ir ter. Há uma coisa, porém, que quero jurar aqui: Eu estou pronto a morrer pela Pátria!”. As palavras são do General Humberto Delgado e foram proferidas no Cine-Parque, em Chaves, no dia 22 de Maio de 1958, durante um comício da sua candidatura à Presidência da República, cujas eleições estavam marcadas para daí a pouco mais de duas semanas. É sabido que o “general sem medo” saiu perdedor nas urnas, mas a História fala-nos de farsa eleitoral, dos registos de campanha apagados cirurgicamente pela polícia política do Estado Novo e destas suas palavras, cujo registo milagrosamente sobreviveu até aos nossos dias, se terem tornado proféticas nesse fatídico 13 de Fevereiro de 1965. Foi precisamente este discurso que Rúben Sevivas tão bem soube recuperar, dando-lhe a forma de filme e chamando-lhe “Direito à Memória”, documentário de nove minutos rodado no decrépito Cine-Parque, entretanto demolido. Com esta curta-metragem, o jovem cineasta parte ao encontro de feitos e factos, transformando a sua arte em objecto de denúncia, e lembrando que a memória é não apenas um direito que a todos assiste, mas encerra igualmente o dever de a preservarmos, de a mantermos viva.

Português de ascendência guineense, Welket Bungué trouxe-nos dois dos momentos mais fortes desta quarta temporada do Shortcutz Ovar, primeiro com “Arriaga”, uma ficção de 24 minutos que nos fala do submundo do crime em Camarate, local onde habita, e depois com “Eu Não Sou Pilatus”, “manifesto artístico com licença poética” que coloca o dedo nessa ferida pútrida que é “o racismo endémico, purgante e distanciador” instalado na nossa sociedade e que aqui é evidenciado, tão cruamente, a propósito dos incidentes do Bairro da Jamaica, em Janeiro do ano passado. Prolongando a narrativa de “Bastien”, que lhe valeu o prémio para “Melhor Primeira Obra” na edição inaugural do Shortcutz Ovar, “Arriaga” é todo ele gíria, calão e tensão, imergindo o espectador num mundo aberto ao submundo pela escassez de oportunidades, pela ocupação abusiva dos territórios e pela indefinição quanto à própria identidade de cada um. Dedicado “a todos os homens e mulheres negros que são diariamente abusados pela polícia e forças opressoras em todo o mundo”, “Arriaga” é uma peça de fruição artística, mas também um manifesto provocatório, que questiona e denuncia. E que pede maior honestidade e transparência na forma como o país lida com a diáspora dentro das suas próprias fronteiras.

Feito a partir de imagens extraídas da rede social Facebook, “Eu Não Sou Pilatus” mostra-nos quão ténue é a linha que separa a ficção da realidade. E digo isto porque o discurso supremacista branco, intolerante e alienado, que povoa uma boa parte deste drama, com quase onze minutos de duração, não poderia ter acontecido. Mas aconteceu e, pior do que isso, acontece todos os dias e com cada vez mais frequência. Welket Bungué recusa “lavar as mãos”, ser como Pilatos, e abre a discussão a partir da Dona Júlia, personagem inqualificável nos seus “pequenos directos” racistas, fantoche de todos os Júlios Césares que se arrogam o poder de imperadores deste mundo. É sintomático que o direito à memória, marcante na curta de Rúben Sevivas, regresse à sala num “loop” inesperado, conhecido que é o esforço das redes sociais em silenciar as minorias incómodas e elevar os “bons exemplos” deixados em nome do nacionalismo culturalista branco. A discussão alargada ao público revelou-se acalorada, reflectindo a preocupação que esta temática convoca mas, sobretudo, mostrando ser o Shortcutz Ovar, também, um espaço de convivência, respeito e liberdade.

Celebrando uma realizadora em estado de graça, esta sessão do Shortcutz Ovar encerrou com Ana Rocha de Sousa a falar do seu trabalho como actriz e, mais recentemente, como realizadora, apresentando “No Mar”, uma média metragem de cariz iniciático, filmada na Praia da Torreira, com Micaela Cardoso e Ruben Garcia nos principais papéis. Abordando uma realidade que toca de forma profunda as comunidades piscatórias – as vidas que o mar rouba para sempre -, Ana Rocha de Sousa oferece-nos um filme com um vínculo documental muito forte, onde se pressentem ecos das vivências da cineasta e onde ressalta o seu particular interesse por temas emocionalmente marcantes no seio das famílias, casos da separação, da ausência e do luto. No caso concreto, talvez possamos falar mesmo de fado, as cordas da guitarra dedilhadas por Marta Pereira da Costa a reforçarem esta sensação. Fruto da observação de uma espectadora, ficou no ar a possibilidade, ainda que remota, de Ana Rocha de Sousa regressar a esta sala com o multi-premiado “Listen” para uma sessão especial. Para já, importa estar atento à estreia do filme, marcada para o próximo dia 22 de Outubro, e entretanto temos Shortcutz Ovar de novo no dia 15. Até lá!