CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #80
Apresentação | Tiago Alves
Com | Rúben Sevivas, André Guiomar, Diogo S. Figueira
Escola de Artes e Ofícios
150 Minutos | Maiores de 14 anos
28 Mar 2024 | qui | 21:30
Os amantes do cinema, que têm no Shortcutz Ovar uma das suas mais importantes referências, voltaram à Escola de Artes e Ofícios para o habitual convívio das últimas quintas-feiras do mês. Antes mesmo de Tiago Alves abrir as hostilidades desta segunda sessão da nova temporada, já a maior parte dos espectadores notava a diferença em termos do conforto que uma almofada no assento das cadeiras pode acrescentar. Num espaço de culto do cinema português em versão curta, este foi um muito apreciado “upgrade”, ao qual se junta a novidade da criação de um podcast mensal sobre cada uma das sessões, da autoria de Francisco Fidalgo, com o apoio da Rádio AVFM, e ainda o anúncio da exibição de “Revolução (sem) Sangue” na próxima sessão do certame, uma longa-metragem de Rui Pedro Sousa em estreia nacional, a ter lugar no Centro de Artes de Ovar, no próximo dia 11 de Abril. Quanto aos filmes exibidos, a intenção dos programadores em apresentar “narrativas que têm a ver com a fé, o dogma, relações humanas, arrependimentos…” veio ao encontro da quadra que atravessamos e os filmes, como veremos, abriram espaço à reflexão e à discussão em torno do sagrado e do profano, do corpóreo e do espiritual.
O primeiro filme exibido, “Flor de Laranjeira”, marcou o regresso a Ovar de Rúben Sevivas. À semelhança dos anteriores “Direito à Memória” e “Sobrevoo”, o realizador trouxe-nos um documentário emotivo que homenageia a figura da avó Isabel (1925 - 2020), “mãe solteira nos anos 50, em plena ditadura”, numa aldeia remota de Trás-os-Montes, com a qual Sevivas se identifica duma forma muito particular. No seu regresso a Soutelo e aos lugares da memória, “para o nº 14 da Rua da Laranjinha”, o realizador mostra que os funerais não são momentos de despedida, lembrando que “as despedidas se vão fazendo com o tempo”. Exercício catártico por natureza, as palavras da avó surgem-nos de forma espontânea e livre, evocando essa relação de afecto num momento de particular fragilidade, o olhar do realizador a pousar sobre os móveis, as fotografias, os quadros, como se de naturezas-mortas se tratasse, prontas para serem passadas à tela de forma impressiva. Filme de uma avó com muitas avós dentro, “Flor de Laranjeira” mergulha nessa “guerra ao Sol” que é a intimidade das relações familiares, a emoção a tomar conta da narrativa e a fazer das fraquezas forças.
Também André Guiomar fez da sua presença na Escola de Artes e Ofícios um regresso, depois de aqui ter estado pela última vez em Março de 2020, quando o seu “Pele de Luz”, documentário sobre a discriminação a que duas irmãs albinas são votadas em Maputo, recebeu o Prémio Especial do Júri na Festa dos Premiados 2019. Desta vez, Guiomar trouxe-nos “Espinho”, um filme com a chancela “The Factory”, organizado pela Quinzena dos Realizadores do Festival de Cinema de Cannes e co-realizado com a israelita Mya Kaplan. Falando da relação de um adolescente, Téo, com o novo pároco da aldeia, o filme aborda questões de enorme complexidade, nomeadamente aquelas que se insinuam no sempre conturbado período da adolescência, no celibato dos padres, nas abjecções da pedofilia ou na relação “padre-pai” em meios fechados. Cientes da dimensão trágica do número de abusos sexuais na Igreja Católica em Portugal, os espectadores são tomados pelo desconforto desde o primeiro instante, confrontado-se com uma narrativa que sugere mais do que mostra, num jogo intenso entre a certeza e a dúvida, o diálogo e os silêncios, o terreno e o divino.
A fechar a sessão, “Sagrada Família”, primeira obra do realizador Diogo S. Figueira, trouxe-nos a história de Adelaide, uma freira recentemente excomungada e que se vê obrigada a regressar a uma vida que inclui Salomé, a filha da qual se afastou quando a sua fé falou mais alto. Jogando no dilema entre a reconciliação familiar e a reconciliação com a Igreja, o filme dá-nos a ver a verdade da carne de que somos feitos nesse diálogo constante com a dimensão espiritual de cada um. É um filme de uma rara sensibilidade, que traz para o interior das suas fronteiras a luta entre Deus e o diabo - genial a visão de uma Nossa Senhora de mãos postas, “a bater palmas” -, deixando ao espectador a tarefa de estabelecer os seus próprios julgamentos. Superlativa, a interpretação de Teresa Sobral responde da melhor forma à figura de uma freira presa pela dúvida, contribuindo decisivamente para a imagem de verdade que o filme pretende passar. Outro aspecto a valorizar prende-se com o trabalho de Tomé Palmeirim em matéria de som, naquilo que é do melhor que temos apreciado a este nível. Um filme que fala de vocação e que, entre o palpável e o etéreo, rematou da melhor forma um belo serão.
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