LIVRO: “No Jardim do Ogre”,
de Leïla Slimani
Título original | “Dans le jardin de l’ogre” (Éditions Gallimard, 2014)
Tradução | Tânia Ganho
Ed. Alfaguara, Maio de 2018 (3ª republicação, Junho de 2023)
“Adèle está arrependida de ter sido imprudente. Nunca deveria ter dançado, ter-se mostrado tão acessível. Não se deveria ter sentado nos joelhos de Laurent e contado, com uma voz trémula e completamente embriagada, uma soturna recordação de infância. Viram-na atacar o rapaz atrás do bar. Viram e não a julgam. É bem pior do que isso. A partir de agora, vão pensar que é possível uma cumplicidade, que a familiaridade é admissível. Vão querer rir-se com ela. Os homens vão pensar que é malandra, leviana, fácil. As mulheres vão rotulá-la de predadora, as mais indulgentes dirão que é frágil. Todos estarão enganados.”
Porque corre Adèle? Porque razão vai de Pigalle aos Campos Elísios, do Museu de Orsay a Bercy, trinta e dois quilómetros em quatro dias, nas margens desertas do rio pela manhã, à noite no Boulevard Rochechouart e na Praça de Clichy? Porque razão, durante uma semana, se impede de beber álcool e faz questão de se deitar mais cedo? Uma semana em que foi capaz de resistir, de não fraquejar. Agora, porém, acordada a meio da noite, vê que os seus fantasmas voltaram e sente-se incapaz de obedecer à sua própria vontade, de se controlar. Os mesmos fantasmas que a obrigam a levantar-se, a beber um café muito forte na casa adormecida, a fumar um cigarro e a entrar no duche com a “vontade de se arranhar, de rasgar o corpo em dois”. Não acorda ninguém. Veste-se no escuro e não se despede. Sai para a manhã que apenas se insinua com um só objectivo. No Metro folheia o jornal sem conseguir concentrar-se. Sente o coração a martelar-lhe no peito, sente que lhe falta o ar. Sabe que o dique rebentou, que “já está tudo lixado”. Sai do Metro e desata a correr. Porque corre Adèle?
Com a perícia de um taxidermista e a precisão de um cirurgião plástico, Leïla Slimani constrói, ao longo de um pouco menos de duzentas páginas, o retrato de uma mulher tomada pela solidão, a angústia e a culpa. Sentimentos que arrasta consigo sem comoção ou arrependimento, como uma ferida impossível de sarar. Adèle é uma mulher que sofre e isso o leitor percebe logo no segundo parágrafo. Pouco a pouco irá dar conta, pelo olhar de outras personagens, que “tem uns olhos bonitos e um certo ar misterioso”, que é casada com um gastroenterologista “que ganha bem”, que tem um filho com quase três anos. Tomará nota da idade, 35 anos, “cortou os cabelos curtos, (…) as suas feições endureceram, mas o seu olhar deslavado ganhou em pujança”. Mais tarde saberá que tem olhos verdes e, mais tarde ainda, que o pai tem igualmente olhos verdes. Tudo isto é revelado a conta-gotas, a narrativa a rejeitar quaisquer tentações voyeuristas, o objecto do livro centrado na mente desta mulher, no que a domina, no que é nervo e instinto, no que a faz olhar para si e sentir-se desprezível.
Romance de estreia da escritora e activista marroquina Leïla Slimani, “No Jardim do Ogre” é um livro que impressiona vivamente. Em chamada de capa, o The New Yorker refere que a autora “é extraordinária a escrever sobre o corpo das mulheres”, mas penso que a afirmação lavra em dois erros. Desde logo, porque não é o corpo que está em causa neste livro, antes o que se faz do corpo, mero objecto, mudo e submisso. E, depois, porque, apesar de Sophie, Odile ou Lauren, só há Adèle nesta história profundamente triste, o seu desejo insaciável, a pulsão impossível de conter, a aflição por não lhe conseguir pôr fim. Os homens são os únicos pontos de referência da sua existência, princípio e fim daquilo que a faz correr (para responder à pergunta enunciada no início desta recensão). Todo o livro é precioso, mas há imagens que são verdadeiramente avassaladoras, sobretudo aquelas que se passam no seio conjugal. E digo “imagens” porque lemos o livro como quem vê um filme, a luz fora de campo, o centro da acção na penumbra, feito desespero, ausência, agonia. Comovente, perturbador, é um livro que entra em nós com a força de uma gazua e promete não se ir embora tão cedo.
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