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segunda-feira, 1 de abril de 2024

LIVRO: "Uma Brancura Luminosa"



LIVRO: “Uma Brancura Luminosa”,
de Jon Fosse
Título original | “Kvitleik”
Tradução | Liliete Martins
Ed. Cavalo de Ferro, Fevereiro de 2024


“Agora a lua está coberta por nuvens e já não se pode ver nada e eu ouço a minha mãe exclamar: onde estás - e eu ouço o meu pai dizer: estou aqui - e a minha mãe diz que sabe isso, pois está a segurar-lhe no braço, diz ela, não era a ele que ela se referia, era a mim, diz ela, e o meu pai diz: sim, é claro, eu apenas respondi sem pensar - e a minha mãe diz: pois, como é costume - e a seguir faz-se silêncio e nenhum deles diz o que quer que seja. Eu estou de pé totalmente silencioso. Quero um silêncio total, quero escutar o silêncio. Porque é no silêncio que Deus se faz ouvir.”

Depois do admirável “Manhã e Noite”, regresso a Jon Fosse e a uma escrita que é, simultaneamente, inquieta e branda, sensível e perturbadora. Em “Uma Brancura Luminosa”, o seu mais recente livro, Fosse volta a fazer incidir a sua atenção sobre os derradeiros instantes da vida, aquele momento de passagem em que já não estamos cá e ainda estamos, rodeado de uma profunda indefinição, sentindo que nos afastamos lentamente da matéria e nos entregamos ao etéreo, ao impalpável, a “uma brancura luminosa”. Lançando o braço sobre o ombro do leitor, guiando-o por caminhos que à fé dizem respeito, o autor faz notar, com voz serena, que a dúvida é uma virtude maior do ser, a capacidade de pôr em causa as certezas claras e distintas como fonte de conhecimento, a primazia dos sentidos como caminho ínvio de condução do homem à razão. Mas também sugere que deve aceitar de forma tranquila a ausência de respostas satisfatórias às suas dúvidas e inquietações, a ideia de verdade como algo inescrutável.

“Uma Brancura Luminosa” fala-nos de um homem que, tomado pelo tédio, decide sair de casa e conduzir sem destino, seguindo ao acaso até entrar numa estrada florestal que parece não ter fim. Com o carro atolado, decide partir em busca de auxílio, mas não sabe para onde nem a quem se dirigir. O final do Outono traz consigo as primeiras neves e os dias curtos fazem com que a tarde caia rapidamente. Decidido a regressar a casa, o homem embrenha-se na floresta, certo de que encontrará ajuda, mas rapidamente percebe que está perdido e não tem como regressar ao carro. Enregelado, esgotado, mergulhado num mar de dúvidas, vai questionando os porquês da sua conduta, ao mesmo tempo que descobre que não está sozinho. Afinal, talvez haja por ali alguém capaz de o compreender, de o orientar de regresso ao carro, de o pôr a salvo. Ou não passará tudo de mera ilusão, um produto da sua imaginação destinado a acrescentar mais dúvidas àquelas que já existem, a aumentar a sua estranheza, a sua ansiedade?

Fazendo da ficção uma arma poderosíssima, Jon Fosse parte ao encontro de si mesmo, das suas interrogações, num exercício de auto-reflexão que se revela, no limite, pacificador. Não se trata aqui de decifrar um qualquer mistério, antes partilhar com o leitor a percepção de que o mundo e a realidade são enigmáticos e vão muito para além do que possamos compreender ou exprimir por palavras. Apesar do desconforto que um assunto desta natureza gera, é de paz o tom da narrativa, as muitas camadas que a constituem a darem voz ao indizível e a conduzirem o leitor para um ponto de compreensão que não colide com as suas próprias crenças, antes as sustentam e reforçam. De uma enorme espiritualidade, “Uma Brancura Luminosa” reflecte de forma lúcida o pensamento religioso ou filosófico de Fosse, um homem que faz da escrita um meio de se aproximar de algo em que confia, que não consegue descrever, mas que não tem problemas nenhuns em chamar-lhe Deus. Um livro para todos, crentes e não crentes.

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