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terça-feira, 2 de abril de 2024

LIVRO: "Siríaco e Mister Charles"



LIVRO: “Siríaco e Mister Charles”,
de Joaquim Arena
Edição | Francisco José Viegas
Ed. Quetzal Editores, Maio de 2022


“Mas ao jovem Charles, que Siríaco observa passeando sozinho pelo ilhéu, pouco interessa o momento mercantil. Os seus olhos procuram identificar os estranhos animais que circulam por entre poças de água e pedras. Siríaco recorda a maresia da sua primeira viagem; a brisa nocturna e o aperto no coração que uma vastidão líquida consegue provocar. O tempo traz aos acontecimentos uma espécie de transparência encantatória e ao mesmo tempo uma incontornável amargura. Mister Merrill, o cônsul, interrompe-lhe os pensamentos, dizendo-lhe que ele poderá ser de grande valia aos ingleses. Talvez seja bom ele ficar ao seu serviço, não só como intérprete, mas para ajudar naquilo que o capitão e os oficiais possam vir a precisar enquanto ali permanecerem. “Não quero que lhes falte nada, não vão esses oficiais nobres emproados dizer lá em Londres que o seu cônsul nestas ilhas lhes faltou com alguma coisa.”

Quando realidade e ficção se cruzam, o resultado pode ser verdadeiramente emocionante. Neste livro acabado de ler, o mais recente vencedor do prestigiado Prémio Oceanos, aquilo que mais cativa o leitor é a forma engenhosa como Joaquim Arena narra um encontro que só por artes da ficção ocorreu, servindo-se para isso de duas personagens reais, em tudo distintas entre si, mas coincidentes no tempo. Charles Darwin é uma delas. O jovem naturalista tem 22 anos e é ainda um aprendiz quando o Beagle, uma fragata da marinha inglesa onde viaja para terras do Sul da América, faz uma escala de vinte e três dias em Porto Praia, na ilha de Santiago, arquipélago de Cabo Verde. Charles fica rendido aos cheiros e ao sentir da primeira terra tropical que pisa, mas sobretudo ao velho negro, esguio e tímido, que lhe é apresentado como guia e intérprete. Chama-se Siríaco, nasceu no Brasil e é um ex-escravo que sofre de vitiligo, o que faz dele alvo da curiosidade geral.

Embora a capa do livro nos leve a pensar que é Darwin a figura central da história, na verdade é de Siríaco que o livro fala. Siríaco que nunca pisou Cabo Verde, é verdade, mas que nasceu escravo no engenho de Princeza da Mata, “nesses campos de cana de Sergipe Del Rey”, e viveu quase toda a sua vida “livre como muitos, livre-alforriado, honrado e preparado para a vida”. E que tinha vitiligo, a mancha a nascer na cabeça e a estender-se a uma boa parte do corpo, “manto do espanto e do mistério” que fazia dele “menino-onça ou negro pigarço”. Do vale do Cotinguiba a São Salvador da Bahia e daí a Lisboa e à corte de D. Maria, às salas e salões dos palácios reais, aos claustros e jardins luxuriantes, vai uma história improvável de grandezas e misérias, ignorância e crueldade. Até ao momento em que Charles e Siríaco se cruzam, numa ilha vulcânica no coração do Atlântico, e o primeiro reconhece no negro “muito mais do que um simples mestre carpinteiro (…), um homem de outra cultura”.

Na escrita de Joaquim Arena prevalecem duas paixões. A paixão pela História, desde logo, evidente nas longas pesquisas que foi obrigado a fazer para nos situar nos ambientes da corte de uma rainha louca, num império em crise com dois irmãos em luta por um trono, nas descobertas do jovem naturalista Charles Darwin tendo como pontos de partida os escritos de Lyell, as teorias de Henslow e as viagens de Von Humboldt, na escravatura nos engenhos de açúcar com as escunas negreiras a persistirem no infame negócio apesar de todas as proibições, no desígnio civilizador a pender sobre três índios da Terra do Fogo para serem mais tarde devolvidos às suas famílias com a missão de espalhar a fé. Mas, sobretudo, a paixão por Cabo Verde, evidente na forma cuidada como recupera a exuberância da vegetação tropical, o vasto campo geológico que é a ilha de Santiago, o carinho com que se refere à vila da Praia e ao cabeço de Monte Facho, à vila de São Domingos, à Trindade ou à Ribeira Grande, a menção à seca, às pragas, às doenças, ao ciclo terrível das fomes. Lição de História e lição de Vida, “Siríaco e Mister Charles” é um livro para guardar nos nossos lugares mais especiais.

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