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sexta-feira, 6 de maio de 2022

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #60



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #60
Escola de Artes e Ofícios
135 minutos | Maiores de 14 anos
05 Mai 2022 | qui | 21:30


Sem máscaras. Foi desta forma, espalhando sorrisos, que (quase todos) os “suspeitos do costume” se apresentaram na Escola de Artes e Ofícios, para assistir àquela que foi a terceira sessão da sexta temporada do Shortcutz Ovar. Após vinte e duas sessões vividas sob o peso das máscaras, a normalidade está de regresso, conforme salientou Tiago Alves, programador e apresentador destas noites imperdíveis, também ele de cara descoberta, a máscara do “puto vírus” deixada em casa. Mas se na plateia o público dizia adeus às máscaras, na tela a pandemia fazia-se notar de forma evidente, mostrando até que ponto pode ser causa e efeito de um objecto fílmico. Salvaguardando diferenças de género e de estilo, foi assim com as três curtas-metragens apresentadas, todas elas histórias na primeira pessoa, circunspectas, ponderadas, com uma forte ligação a um momento de distanciamento e clausura, reflectindo a forma como fomos obrigados a equacionar o mundo em que vivemos e o nosso posicionamento face aos outros e a nós mesmos.

Começando pela última curta da noite, “Fora de Jogo” fez-nos mergulhar na história de Leonardo, um jovem que sofre a desaprovação da tia na busca do sonho de ser jogador de futebol. Contando com uma bela interpretação de João Cravo Cardoso, o filme tem fortes ressonâncias pessoais, espelhando a experiência traumática do realizador José Freitas quando, aos 13 anos, também quis ser jogador de futebol e seu viu confrontado com uma nega para a aquisição de um par de chuteiras. Nesta que é a sua primeira obra, o realizador representa aqueles cujos sonhos não são convencionais e ainda vivem num ambiente que descredibiliza estas ambições como sendo utopias, não enquadráveis nos objetivos conservadores tradicionais que o seu meio abraça. Em equilíbrio sobre a ténue linha que distingue a realidade da ficção, “Fora de Jogo” não pode deixar de ser encarado como uma catarse, libertando o autor do peso da rejeição e ajudando-o a transformar as dúvidas em certezas.

“Fruto do Vosso Ventre” foi o primeiro filme da noite e causou no público um fortíssimo impacto. Ao longo de 20 minutos, o realizador Fábio Silva passa em revista as suas quase três décadas de vida, marcadas por uma relação conflituosa com o pai. Trata-se de um “filme familiar”, se considerado de um ponto de vista lato, do qual a dimensão celebratória está ausente. O filme adquire, então, um cunho pessoal intenso e denso, transformando-se numa “carta ao pai”, acusadora e condenatória, carregada de amargura e desencanto. É um filme com uma força interior invulgar, despojado na forma como a intimidade é exposta, feito de coragem e determinação. Um filme que pode, nas suas várias leituras, ser apreciado numa dimensão catártica, visto como uma lição ou um exemplo, ou partir ao encontro das questões da diáspora ao centrar-se numa família cabo-verdiana cujos valores tradicionais foram preteridos em favor de processos de assimilação à nova realidade da vida num bairro social dos arredores de Lisboa.

Propositadamente, deixo para o final “Sobrevoo”, filme que trouxe de novo a Ovar o flaviense Rúben Sevivas, depois de aqui ter apresentado, em 2020, “Direito à Memória”. Assumido como um “auto-retrato”, espécie de confissão emocional e testemunho de um período particularmente duro da nossa história recente, “Sobrevoo” tem esse dom de nos tocar pela sua verdade e intensidade, de nos fazer reflectir na forma como encaramos a adversidade e nas ferramentas de que dispomos para as ultrapassar. Este jovem que vive sozinho, que tem contas por pagar e comida para pôr na mesa, que se vê a braços com a precariedade e as incertezas e que, no meio de tudo isto, tem em mãos um filme que precisa de acabar, é o exemplo de muitos jovens (e menos jovens) que tentam manter-se à tona no meio de incertezas e frustrações e que vão resistindo à tentação de baixar os braços. Rúben Sevivas personifica a coragem de virar a página do passado e começar tudo de novo. Rodado em plena quarentena, no curto espaço de uma semana, este é um filme intemporal e que conta com um extraordinário actor, Rúben Sevivas, precisamente. O mesmo que não desiste. E que continua a fazer excelente cinema!

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