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sexta-feira, 2 de outubro de 2020

CINEMA: Shortcutz Ovar 2020 | Sessão #40



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #40
Escola de Artes e Ofícios
90 Minutos | Maiores de 16 anos
01 Out 2020 | qui | 22:00


Após dois meses de ausência para umas retemperadoras e merecidas férias, a quarta temporada do Shortcutz Ovar voltou a marcar presença no belíssimo espaço da Escola de Artes e Ofícios, ao encontro de um público saudoso das emoções do formato curto e dos momentos de partilha que as conversas com os agentes de cinema sempre proporcionam. De regresso a uma casa que fez questão de chamar sua – “é aqui que me sinto em casa”, disse -, Tiago Alves voltou a conduzir brilhantemente a “soirée”, trazendo com ele uma convidada especial, Ana Rocha de Sousa, e fazendo a ponte entre a cidade-museu do azulejo e a bela Veneza, em cuja Mostra a cineasta foi muito feliz há um par de dias, arrecadando de uma assentada seis prémios com “Listen”, a sua primeira longa-metragem. Mas os aliciantes desta noite de cinema não se quedavam por aqui, com Rúben Sevivas e Welket Bungué a apresentarem os seus filmes em competição e a fazerem adivinhar um serão “quente”, sobretudo pela mensagem política que unia os trabalhos e se afirmava como o fio condutor desta sessão. E na verdade assim foi, o debate em torno de questões fracturantes da nossa sociedade a impor-se de forma emotiva e a prender o público ao longo de quase quatro horas.

“Todos nós, cidadãos pacíficos duma candidatura pacífica, queremos pacificamente conquistar a paz. Mas os esbirros do governo, como têm visto, andam a chamar-nos subversivos nos jornais e a tratar-nos na via pública como malfeitores. Ninguém sabe, portanto, minhas senhoras e meus senhores, onde isto pode ir ter. Há uma coisa, porém, que quero jurar aqui: Eu estou pronto a morrer pela Pátria!”. As palavras são do General Humberto Delgado e foram proferidas no Cine-Parque, em Chaves, no dia 22 de Maio de 1958, durante um comício da sua candidatura à Presidência da República, cujas eleições estavam marcadas para daí a pouco mais de duas semanas. É sabido que o “general sem medo” saiu perdedor nas urnas, mas a História fala-nos de farsa eleitoral, dos registos de campanha apagados cirurgicamente pela polícia política do Estado Novo e destas suas palavras, cujo registo milagrosamente sobreviveu até aos nossos dias, se terem tornado proféticas nesse fatídico 13 de Fevereiro de 1965. Foi precisamente este discurso que Rúben Sevivas tão bem soube recuperar, dando-lhe a forma de filme e chamando-lhe “Direito à Memória”, documentário de nove minutos rodado no decrépito Cine-Parque, entretanto demolido. Com esta curta-metragem, o jovem cineasta parte ao encontro de feitos e factos, transformando a sua arte em objecto de denúncia, e lembrando que a memória é não apenas um direito que a todos assiste, mas encerra igualmente o dever de a preservarmos, de a mantermos viva.

Português de ascendência guineense, Welket Bungué trouxe-nos dois dos momentos mais fortes desta quarta temporada do Shortcutz Ovar, primeiro com “Arriaga”, uma ficção de 24 minutos que nos fala do submundo do crime em Camarate, local onde habita, e depois com “Eu Não Sou Pilatus”, “manifesto artístico com licença poética” que coloca o dedo nessa ferida pútrida que é “o racismo endémico, purgante e distanciador” instalado na nossa sociedade e que aqui é evidenciado, tão cruamente, a propósito dos incidentes do Bairro da Jamaica, em Janeiro do ano passado. Prolongando a narrativa de “Bastien”, que lhe valeu o prémio para “Melhor Primeira Obra” na edição inaugural do Shortcutz Ovar, “Arriaga” é todo ele gíria, calão e tensão, imergindo o espectador num mundo aberto ao submundo pela escassez de oportunidades, pela ocupação abusiva dos territórios e pela indefinição quanto à própria identidade de cada um. Dedicado “a todos os homens e mulheres negros que são diariamente abusados pela polícia e forças opressoras em todo o mundo”, “Arriaga” é uma peça de fruição artística, mas também um manifesto provocatório, que questiona e denuncia. E que pede maior honestidade e transparência na forma como o país lida com a diáspora dentro das suas próprias fronteiras.

Feito a partir de imagens extraídas da rede social Facebook, “Eu Não Sou Pilatus” mostra-nos quão ténue é a linha que separa a ficção da realidade. E digo isto porque o discurso supremacista branco, intolerante e alienado, que povoa uma boa parte deste drama, com quase onze minutos de duração, não poderia ter acontecido. Mas aconteceu e, pior do que isso, acontece todos os dias e com cada vez mais frequência. Welket Bungué recusa “lavar as mãos”, ser como Pilatos, e abre a discussão a partir da Dona Júlia, personagem inqualificável nos seus “pequenos directos” racistas, fantoche de todos os Júlios Césares que se arrogam o poder de imperadores deste mundo. É sintomático que o direito à memória, marcante na curta de Rúben Sevivas, regresse à sala num “loop” inesperado, conhecido que é o esforço das redes sociais em silenciar as minorias incómodas e elevar os “bons exemplos” deixados em nome do nacionalismo culturalista branco. A discussão alargada ao público revelou-se acalorada, reflectindo a preocupação que esta temática convoca mas, sobretudo, mostrando ser o Shortcutz Ovar, também, um espaço de convivência, respeito e liberdade.

Celebrando uma realizadora em estado de graça, esta sessão do Shortcutz Ovar encerrou com Ana Rocha de Sousa a falar do seu trabalho como actriz e, mais recentemente, como realizadora, apresentando “No Mar”, uma média metragem de cariz iniciático, filmada na Praia da Torreira, com Micaela Cardoso e Ruben Garcia nos principais papéis. Abordando uma realidade que toca de forma profunda as comunidades piscatórias – as vidas que o mar rouba para sempre -, Ana Rocha de Sousa oferece-nos um filme com um vínculo documental muito forte, onde se pressentem ecos das vivências da cineasta e onde ressalta o seu particular interesse por temas emocionalmente marcantes no seio das famílias, casos da separação, da ausência e do luto. No caso concreto, talvez possamos falar mesmo de fado, as cordas da guitarra dedilhadas por Marta Pereira da Costa a reforçarem esta sensação. Fruto da observação de uma espectadora, ficou no ar a possibilidade, ainda que remota, de Ana Rocha de Sousa regressar a esta sala com o multi-premiado “Listen” para uma sessão especial. Para já, importa estar atento à estreia do filme, marcada para o próximo dia 22 de Outubro, e entretanto temos Shortcutz Ovar de novo no dia 15. Até lá!

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