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domingo, 8 de outubro de 2023

LIVRO: "Tudo São Histórias de Amor"



LIVRO: “Tudo São Histórias de Amor”,
de Dulce Maria Cardoso
Ed. Edições Tinta-da-china, Março de 2014 (2ª edição aumentada, bolso, Abril de 2021)


“Tu e eu nunca fomos parecidas, mas também não éramos opostas. Poderíamos ter-nos complementado se não se desse o caso de partilharmos o mesmo corpo. Dispúnhamos apenas de um corpo, este que agora é só meu. Nunca deixámos de guerrear na nossa existência intermitente. A vitória de uma seria a derrota da outra. Aquela de nós que matasse a outra cometeria um crime perfeito, um assassínio sem cadáver. Eras mais capaz nas coisas do mundo. Achava que serias tu a acabar comigo. Mas não. Escrevo-te do local do crime. Do sítio das palavras.”

Que Dulce Maria Cardoso é uma extraordinária romancista, sabia-o bem desde que li “O Retorno” e “Eliete - A Vida Normal”. Que os seus dotes de cronista são igualmente relevantes, ficou provado com “Autobiografia Não Autorizada”, cujo segundo volume acaba de ser publicado. Qualquer dos três livros referidos, por muito diferentes que possam ser entre si, têm em comum uma intertextualidade delicada e subtil, um conjunto de personagens, lugares e vivências que os tornam próximos. Mas têm, sobretudo, Dulce Maria Cardoso naquilo que foi e é, na sua verdade, na elegância da sua escrita e na arte de contar uma história. Uma enorme contista, portanto, que “Tudo São Histórias de Amor” vem confirmar em vinte e um contos onde a palavra amor se inscreve por inteiro, ao arrepio de lamechices e de qualquer cor-de-rosismo. Amor imperfeito, rude, desajeitado, magoado, que se cruza com temas como a indiferença ou o preconceito, a maldade ou a solidão, o dever ou a consciência. Histórias de amor, sim, mas nem sempre de final feliz.

Editado em Março de 2014, esta antologia de contos conheceu duas republicações, a última das quais (a que tive oportunidade de ler), em formato bolso, revista e aumentada. Procurei saber quais os contos que foram acrescentados à edição original, mas não descobri essa informação. Cruzando datas, percebo que “Diário de uma cuidadora informal, ou para que servem os velhos?” é um deles (se é que há mais do que um). Vale a pena falar deste conto em forma de diário, já que ele diz muito da autora e da sua escrita, do seu viver interior, da sua forma de ver o mundo. É um conto que, por si só, justifica a leitura do livro, tão forte e poderoso é o seu pensar sobre este presente distópico que tende a afastar os velhos do centro de interesses de uma sociedade fechada sobre si própria e que fenómenos como a pandemia apenas agravaram, pondo a nu a falta de solidariedade com os menos capazes. O conto mostra a proximidade da relação entre Dulce Maria Cardoso e a sua mãe, na altura com 81 anos e com um processo de demência em curso. É tocante a forma como a autora coloca o dedo nas várias feridas, como se despe de preconceitos e envolve o leitor num problema que todos devemos encarar.

Um cão a roubar carne para a velha que já não sai de casa e vive isolada no último andar de um prédio, uma mãe obrigada a escolher qual dos dois filhos salva de morrer atropelado, um rapaz com um baralho de cartas a ganhar uma mulher ao jogo, uma mulher a engolir uns brincos de jade e a suicidar-se, uma cadela chamada Jinja a entrar na cabeça da Dulce e a servir-lhe de inspiração para um texto. Tudo isto são histórias de amor. Mergulhar nelas é abarcar um mundo cuja respiração se dá a ver num expandir e encolher sem pausas, desgastado e sujo, tornado suportável no desfiar de memórias que acabamos por confundir e nos deixam na incerteza de que sejam realmente nossas. Imprevisíveis, cativantes, provocantes, inspiradoras, as histórias abrem-se como um extenso mapa de paisagens da alma, dentro das quais o coração pula, como que por magia, “pum, pum, pum, pum”. Saltando de uns contos para outros, piscando o olho ao lado de lá da rua onde vivem os restantes livros da autora, as personagens ganham vida própria. Tomam-nos pela mão e mostram-nos as histórias de amor que nos habitam e que animam o pulsar do nosso coração.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

LIVRO: "Autobiografia Não Autorizada"



LIVRO: “Autobiografia Não Autorizada”,
de Dulce Maria Cardoso
Ed. Tinta-da-china, Junho de 2021


“A minha mãe faz hoje 80 anos. Quando fala do seu nascimento refere que a Segunda Guerra Mundial começou nesse ano e eu sinto-me tentada a reconhecer nessa coincidência um sinal dos muitos tumultos por que a sua vida passou, mas a minha mãe, bastante mais capaz do que eu para tratar sofrimentos, não se detém em comparações despropositadas, O importante é seguir em frente, garante, desembaraçada do passado. E eu sempre tão enrodilhada nele.”

“Autobiografia Não Autorizada” reúne um conjunto de crónicas que Dulce Maria Cardoso assina periodicamente na revista “Visão”. Nelas, a autora assume o papel de personagem maior, falando sobretudo de si, das suas vivências, das suas memórias, de uma infância feliz passada em Luanda. Do regresso precipitado a um Portugal de murais coloridos a gritar revoluções e palavras de ordem como “faxismo nunca +”. Das enormes dificuldades desses tempos do “retorno”. Dos avós em Carrazeda de Ansiães, do frio, dos pontos que acrescentava aos contos que inventava e que lhe trouxeram a certeza de um dia vir a ser escritora. Ainda de uma residência literária numa pequena cidade alemã, de uma passagem pela Urgência do Santa Maria com a pulseira amarela, de uma tentativa de violação de que foi alvo menina ainda, das limitações que tendem a eternizar-se no actual estado pandémico.

Nós a aguardarmos ansiosamente a segunda parte do magistral “Eliete” e Dulce Maria Cardoso a trocar-nos as voltas e a propor-nos um conjunto de cinquenta e quatro crónicas, cinquenta e quatro histórias de vida, nas quais não há como não nos revermos. Desde logo, porque os tempos angustiantes de uma pandemia que se arrasta há dois anos tocam a todos e vão deixando marcas bem fundas. Depois, que levante o dedo quem nunca foi criança e subiu às árvores, fez das aventuras do vilão e iletrado Sinhozinho Malta e da tonta e corrupta Viúva Porcina um divertimento imperdível, teve uma máquina de lavar roupa avariada, um amigo que partiu demasiado cedo ou sentiu que esta vida é um tremendo despropósito. É desta proximidade que o livro vive, da forma como nos enleia, nos eleva nas nossas forças e certezas ou põe a nu as nossas fragilidades, os nossos medos e fracassos.

À dimensão humana de “Autobiografia Não Autorizada”, importa acrescentar a dimensão literária, o livro povoado de personagens que reconhecemos de romances anteriores da autora. São elas (ou as memórias que delas guardamos) que nos mostram como se modela uma figura a partir de um pedaço de barro, como vemos ganhar vida aquilo que ainda agora era inerte. Expresso num figurino que se assume como uma mistura de realidade e ficção, o livro mostra o quanto escrever pode ser uma forma de “pensar devagar”, unindo escritor e leitor em torno de um mesmo pensamento, criando uma empatia que se vai reforçando crónica após crónica, a ponto de fecharmos o livro e percebermos o quanto reacções, pensamentos e ideais podem enredar-se com tanta força, ainda que as vivências possam ser tão diversas. Não saberemos nunca que mentiras se escondem nas verdades reveladas por Dulce Maria Cardoso. Mas que importa isso quando o que lemos nos dá tanto gozo?

domingo, 19 de dezembro de 2021

LIVRO: "O Retorno"



LIVRO: “O Retorno”,
de Dulce Maria Cardoso
Ed. Edições Tinta-da-china, 2011
Edição comemorativa Outubro de 2021 (14ª edição)


“Não, a metrópole não pode ser como hoje a vimos. A prova de que Portugal não é um país pequeno está no mapa que mostrava quanto o império apanhava da Europa, um império tão grande como daqui até à Rússia não pode ter uma metrópole com ruas onde mal cabe um carro, não pode ter pessoas tristes e feias, nem velhos desdentados nas janelas tão sem serventia que nem para a morte têm interesse. Lá os velhos tinham dentes postiços muito brancos e andavam de um lado para o outro com chapéu na cabeça e os fatos dos trópicos engomados. Quando o pai via os velhos a comer marisco no Restinga dizia, aqui até os velhos fintam a morte.”

Angola, finais de 1974. O processo de descolonização está em curso e a independência do país tem data marcada. São muitos os que se recusam a aceitar o retorno, o regresso à metrópole, o lugar de onde há muito fugiram com “uma barriga inchada de fome e uma cabeça cheia de piolhos”. Aqui têm a sua vida organizada, as suas casas, os seus negócios, os seus pretos. O sentimento geral é de negação, a noite de passagem de ano aí está a provar que não se passa nada. Os tiros que se ouvem cada vez mais perto continuam muito longe, as vozes ameaçadoras que se levantam não passam da boca para fora. Até que a violência escala muito rapidamente e a necessidade de deixar tudo para trás impõe-se com a urgência das vidas em risco. Mais de trezentas mil pessoas deixam Angola numa gigantesca ponte aérea e chegam à Portela com pouco mais do que a roupa que trazem no corpo. A Dona Glória e os seus dois filhos, o Rui e a Lurdes, estão entre os retornados.

Retrato emotivo de um dos episódios mais marcantes da nossa História recente, “O Retorno” coloca o leitor no turbilhão de um processo que representou uma mudança radical na vida de meio milhão de pessoas e lançou o país numa profunda crise. Mergulhados num “pingue-pongue” político pela condução dos destinos de uma democracia débil, figuras como Rosa Coutinho, Almeida Santos, Mário Soares, Pinheiro de Azevedo, Vasco Gonçalves ou o próprio Presidente da República, o general Costa Gomes, mostram-se indiferentes à verdadeira catástrofe humanitária que se desenrola à sua volta. O Hotel Estoril Sol, o maior do país à altura dos acontecimentos, irá ser durante muito tempo o epicentro das vidas de várias centenas de famílias, os quartos transformados em camaratas, as refeições tomadas após horas de espera em filas intermináveis, os salões divididos entre os “exclusivos a hóspedes” e os restantes, destinados aos retornados.

Narrado na primeira pessoa pelo Rui, o filho mais novo desta família desfeita por força das circunstâncias, “O Retorno” tem um cunho marcadamente autobiográfico. Nascida em Trás-os-Montes em 1964, Dulce Maria Cardoso foi, ainda bebé, com a família para Luanda. As recordações de uma vida feliz em África misturam-se com o regresso a Portugal na atribulada ponte aérea, escapando de um ambiente de guerra civil. A escrita directa, os relatos factuais de um conjunto de momentos de grande tensão, os conflitos interiores dominados pela raiva e pela revolta e a enorme franja de emoções tintadas de nostalgia e saudosismo fazem deste livro um dos mais importantes documentos para a compreensão de um período que lançou portugueses “de cá” e portugueses “de lá” uns contra os outros. Combinando com delicadeza as nuances históricas com as pulsões da adolescência, a autora abre a porta a um conjunto de leituras intensas e vivas, nas quais o leitor acabará necessariamente por se rever. Um livro essencial.

sábado, 25 de maio de 2019

LIVRO: "Eliete - A Vida Normal"



LIVRO: “Eliete – A Vida Normal”,
de Dulce Maria Cardoso
Ed. Edições Tinta-da-china, Novembro de 2018


Findas as últimas linhas de “Eliete”, ficou-me uma interjeição a bailar na mente, uma das muitas que “herdei” do meu pai: “Essa é boa!”. De facto, apesar das pistas que vão surgindo ao longo do livro (e Dulce Maria Cardoso é extremamente cuidadosa na forma como gere a informação que vai dispensando ao leitor), nada faria prever uma revelação tão surpreendente. Desde já, aqui fica o meu elogio rasgado à qualidade da escrita da autora e à sua inspirada veia ficcional, exímia em levar o leitor por caminhos que tão bem servem o propósito de contar uma história, dando a “estocada final” no sítio e no momento certos. O meu lamento – e certamente o dos leitores que têm o livro em mãos – é que não esteja ainda disponível a segunda parte deste “Eliete - A Vida Normal”, o enredo em suspenso, uma vontade irreprimível de perceber os passos seguintes, a descoberta adiada.

Mas o livro não acabou? A resposta é “sim” e “não”. “Eliete - A Vida Normal” é apenas uma parte da história duma mulher que, como todas as mulheres, é feita de encanto pronto a ser decifrado. Eliete é essa mulher que se quer livre de estereótipos. Uma mulher pronta a romper amarras em busca da sua auto-estima, a rejeitar o medo e a pressão duma sociedade sexista, a assumir a livre escolha sobre si e sobre o seu corpo, a lutar com todas as forças para driblar o “não” que se lhe oferece apenas pelo facto de ser mulher e a sentir o que só ela sabe que sente dentro de si. Eliete é a mulher que se descobre, que se define, que se reformula e se transforma. Acima de tudo, é a mulher que aprende a amar-se enquanto mulher.

O tempo da leitura de “Eliete” foi, para mim, um tempo de descoberta. É duma extrema doçura e subtileza a forma como Dulce Maria Cardoso compõe a figura desta mulher, como vai alargando o seu espaço, como a vai tornando mais viva e concreta, mais consistente com a forma de se reconhecer e aceitar. “Eliete” é o tempo de um tempo em que a individualidade se assume e a consciência se torna, em que as máscaras caem e com elas o preconceito (o preconceito de género, entenda-se, essa que é uma das nódoas mais negras da nossa sociedade). Entender e amar Eliete é entender e amar todos as mulheres. Pela sua qualidade intrínseca e pelo que representa enquanto espaço de combate e de liberdade, este é um livro que deve merecer da parte de todos uma atenção muito particular. Diria mesmo que deveria ser de leitura obrigatória para todos os homens. Talvez, então, o mundo fosse um bocadinho melhor!