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terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

LIVRO: "Autobiografia Não Autorizada"



LIVRO: “Autobiografia Não Autorizada”,
de Dulce Maria Cardoso
Ed. Tinta-da-china, Junho de 2021


“A minha mãe faz hoje 80 anos. Quando fala do seu nascimento refere que a Segunda Guerra Mundial começou nesse ano e eu sinto-me tentada a reconhecer nessa coincidência um sinal dos muitos tumultos por que a sua vida passou, mas a minha mãe, bastante mais capaz do que eu para tratar sofrimentos, não se detém em comparações despropositadas, O importante é seguir em frente, garante, desembaraçada do passado. E eu sempre tão enrodilhada nele.”

“Autobiografia Não Autorizada” reúne um conjunto de crónicas que Dulce Maria Cardoso assina periodicamente na revista “Visão”. Nelas, a autora assume o papel de personagem maior, falando sobretudo de si, das suas vivências, das suas memórias, de uma infância feliz passada em Luanda. Do regresso precipitado a um Portugal de murais coloridos a gritar revoluções e palavras de ordem como “faxismo nunca +”. Das enormes dificuldades desses tempos do “retorno”. Dos avós em Carrazeda de Ansiães, do frio, dos pontos que acrescentava aos contos que inventava e que lhe trouxeram a certeza de um dia vir a ser escritora. Ainda de uma residência literária numa pequena cidade alemã, de uma passagem pela Urgência do Santa Maria com a pulseira amarela, de uma tentativa de violação de que foi alvo menina ainda, das limitações que tendem a eternizar-se no actual estado pandémico.

Nós a aguardarmos ansiosamente a segunda parte do magistral “Eliete” e Dulce Maria Cardoso a trocar-nos as voltas e a propor-nos um conjunto de cinquenta e quatro crónicas, cinquenta e quatro histórias de vida, nas quais não há como não nos revermos. Desde logo, porque os tempos angustiantes de uma pandemia que se arrasta há dois anos tocam a todos e vão deixando marcas bem fundas. Depois, que levante o dedo quem nunca foi criança e subiu às árvores, fez das aventuras do vilão e iletrado Sinhozinho Malta e da tonta e corrupta Viúva Porcina um divertimento imperdível, teve uma máquina de lavar roupa avariada, um amigo que partiu demasiado cedo ou sentiu que esta vida é um tremendo despropósito. É desta proximidade que o livro vive, da forma como nos enleia, nos eleva nas nossas forças e certezas ou põe a nu as nossas fragilidades, os nossos medos e fracassos.

À dimensão humana de “Autobiografia Não Autorizada”, importa acrescentar a dimensão literária, o livro povoado de personagens que reconhecemos de romances anteriores da autora. São elas (ou as memórias que delas guardamos) que nos mostram como se modela uma figura a partir de um pedaço de barro, como vemos ganhar vida aquilo que ainda agora era inerte. Expresso num figurino que se assume como uma mistura de realidade e ficção, o livro mostra o quanto escrever pode ser uma forma de “pensar devagar”, unindo escritor e leitor em torno de um mesmo pensamento, criando uma empatia que se vai reforçando crónica após crónica, a ponto de fecharmos o livro e percebermos o quanto reacções, pensamentos e ideais podem enredar-se com tanta força, ainda que as vivências possam ser tão diversas. Não saberemos nunca que mentiras se escondem nas verdades reveladas por Dulce Maria Cardoso. Mas que importa isso quando o que lemos nos dá tanto gozo?

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