LIVRO: “Tudo São Histórias de Amor”,
de Dulce Maria Cardoso
Ed. Edições Tinta-da-china, Março de 2014 (2ª edição aumentada, bolso, Abril de 2021)
“Tu e eu nunca fomos parecidas, mas também não éramos opostas. Poderíamos ter-nos complementado se não se desse o caso de partilharmos o mesmo corpo. Dispúnhamos apenas de um corpo, este que agora é só meu. Nunca deixámos de guerrear na nossa existência intermitente. A vitória de uma seria a derrota da outra. Aquela de nós que matasse a outra cometeria um crime perfeito, um assassínio sem cadáver. Eras mais capaz nas coisas do mundo. Achava que serias tu a acabar comigo. Mas não. Escrevo-te do local do crime. Do sítio das palavras.”
Que Dulce Maria Cardoso é uma extraordinária romancista, sabia-o bem desde que li “O Retorno” e “Eliete - A Vida Normal”. Que os seus dotes de cronista são igualmente relevantes, ficou provado com “Autobiografia Não Autorizada”, cujo segundo volume acaba de ser publicado. Qualquer dos três livros referidos, por muito diferentes que possam ser entre si, têm em comum uma intertextualidade delicada e subtil, um conjunto de personagens, lugares e vivências que os tornam próximos. Mas têm, sobretudo, Dulce Maria Cardoso naquilo que foi e é, na sua verdade, na elegância da sua escrita e na arte de contar uma história. Uma enorme contista, portanto, que “Tudo São Histórias de Amor” vem confirmar em vinte e um contos onde a palavra amor se inscreve por inteiro, ao arrepio de lamechices e de qualquer cor-de-rosismo. Amor imperfeito, rude, desajeitado, magoado, que se cruza com temas como a indiferença ou o preconceito, a maldade ou a solidão, o dever ou a consciência. Histórias de amor, sim, mas nem sempre de final feliz.
Editado em Março de 2014, esta antologia de contos conheceu duas republicações, a última das quais (a que tive oportunidade de ler), em formato bolso, revista e aumentada. Procurei saber quais os contos que foram acrescentados à edição original, mas não descobri essa informação. Cruzando datas, percebo que “Diário de uma cuidadora informal, ou para que servem os velhos?” é um deles (se é que há mais do que um). Vale a pena falar deste conto em forma de diário, já que ele diz muito da autora e da sua escrita, do seu viver interior, da sua forma de ver o mundo. É um conto que, por si só, justifica a leitura do livro, tão forte e poderoso é o seu pensar sobre este presente distópico que tende a afastar os velhos do centro de interesses de uma sociedade fechada sobre si própria e que fenómenos como a pandemia apenas agravaram, pondo a nu a falta de solidariedade com os menos capazes. O conto mostra a proximidade da relação entre Dulce Maria Cardoso e a sua mãe, na altura com 81 anos e com um processo de demência em curso. É tocante a forma como a autora coloca o dedo nas várias feridas, como se despe de preconceitos e envolve o leitor num problema que todos devemos encarar.
Um cão a roubar carne para a velha que já não sai de casa e vive isolada no último andar de um prédio, uma mãe obrigada a escolher qual dos dois filhos salva de morrer atropelado, um rapaz com um baralho de cartas a ganhar uma mulher ao jogo, uma mulher a engolir uns brincos de jade e a suicidar-se, uma cadela chamada Jinja a entrar na cabeça da Dulce e a servir-lhe de inspiração para um texto. Tudo isto são histórias de amor. Mergulhar nelas é abarcar um mundo cuja respiração se dá a ver num expandir e encolher sem pausas, desgastado e sujo, tornado suportável no desfiar de memórias que acabamos por confundir e nos deixam na incerteza de que sejam realmente nossas. Imprevisíveis, cativantes, provocantes, inspiradoras, as histórias abrem-se como um extenso mapa de paisagens da alma, dentro das quais o coração pula, como que por magia, “pum, pum, pum, pum”. Saltando de uns contos para outros, piscando o olho ao lado de lá da rua onde vivem os restantes livros da autora, as personagens ganham vida própria. Tomam-nos pela mão e mostram-nos as histórias de amor que nos habitam e que animam o pulsar do nosso coração.
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