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domingo, 19 de dezembro de 2021

LIVRO: "O Retorno"



LIVRO: “O Retorno”,
de Dulce Maria Cardoso
Ed. Edições Tinta-da-china, 2011
Edição comemorativa Outubro de 2021 (14ª edição)


“Não, a metrópole não pode ser como hoje a vimos. A prova de que Portugal não é um país pequeno está no mapa que mostrava quanto o império apanhava da Europa, um império tão grande como daqui até à Rússia não pode ter uma metrópole com ruas onde mal cabe um carro, não pode ter pessoas tristes e feias, nem velhos desdentados nas janelas tão sem serventia que nem para a morte têm interesse. Lá os velhos tinham dentes postiços muito brancos e andavam de um lado para o outro com chapéu na cabeça e os fatos dos trópicos engomados. Quando o pai via os velhos a comer marisco no Restinga dizia, aqui até os velhos fintam a morte.”

Angola, finais de 1974. O processo de descolonização está em curso e a independência do país tem data marcada. São muitos os que se recusam a aceitar o retorno, o regresso à metrópole, o lugar de onde há muito fugiram com “uma barriga inchada de fome e uma cabeça cheia de piolhos”. Aqui têm a sua vida organizada, as suas casas, os seus negócios, os seus pretos. O sentimento geral é de negação, a noite de passagem de ano aí está a provar que não se passa nada. Os tiros que se ouvem cada vez mais perto continuam muito longe, as vozes ameaçadoras que se levantam não passam da boca para fora. Até que a violência escala muito rapidamente e a necessidade de deixar tudo para trás impõe-se com a urgência das vidas em risco. Mais de trezentas mil pessoas deixam Angola numa gigantesca ponte aérea e chegam à Portela com pouco mais do que a roupa que trazem no corpo. A Dona Glória e os seus dois filhos, o Rui e a Lurdes, estão entre os retornados.

Retrato emotivo de um dos episódios mais marcantes da nossa História recente, “O Retorno” coloca o leitor no turbilhão de um processo que representou uma mudança radical na vida de meio milhão de pessoas e lançou o país numa profunda crise. Mergulhados num “pingue-pongue” político pela condução dos destinos de uma democracia débil, figuras como Rosa Coutinho, Almeida Santos, Mário Soares, Pinheiro de Azevedo, Vasco Gonçalves ou o próprio Presidente da República, o general Costa Gomes, mostram-se indiferentes à verdadeira catástrofe humanitária que se desenrola à sua volta. O Hotel Estoril Sol, o maior do país à altura dos acontecimentos, irá ser durante muito tempo o epicentro das vidas de várias centenas de famílias, os quartos transformados em camaratas, as refeições tomadas após horas de espera em filas intermináveis, os salões divididos entre os “exclusivos a hóspedes” e os restantes, destinados aos retornados.

Narrado na primeira pessoa pelo Rui, o filho mais novo desta família desfeita por força das circunstâncias, “O Retorno” tem um cunho marcadamente autobiográfico. Nascida em Trás-os-Montes em 1964, Dulce Maria Cardoso foi, ainda bebé, com a família para Luanda. As recordações de uma vida feliz em África misturam-se com o regresso a Portugal na atribulada ponte aérea, escapando de um ambiente de guerra civil. A escrita directa, os relatos factuais de um conjunto de momentos de grande tensão, os conflitos interiores dominados pela raiva e pela revolta e a enorme franja de emoções tintadas de nostalgia e saudosismo fazem deste livro um dos mais importantes documentos para a compreensão de um período que lançou portugueses “de cá” e portugueses “de lá” uns contra os outros. Combinando com delicadeza as nuances históricas com as pulsões da adolescência, a autora abre a porta a um conjunto de leituras intensas e vivas, nas quais o leitor acabará necessariamente por se rever. Um livro essencial.

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