Ao entrar no espaço acolhedor do MIRA artes performativas para a 11.ª edição do MIRA Pinhole Photography, a sensação dominante é a de atravessar um portal temporal onde a fotografia se despede dos automatismos e recupera o seu grau zero, feita de luz, matéria e tempo. O texto inaugural de Rui Apolinário funciona como uma bússola crítica, lembrando que esta prática - tão primitiva quanto actual - remonta a Brewster e aos experimentalistas do século XIX, mas repousa sobre um saber ainda mais antigo, conhecido pelo menos desde o século V a.C. Essa arqueologia do olhar não é evocada como exercício nostálgico, antes opera como consciência histórica num espaço que aposta, entre o lesto e o lento, na fricção entre velocidades. A inauguração simultânea da mostra pinhole e da fotografia mobile no MIRA Galerias reforça essa tensão produtiva: uma celebra a volatilidade tecnológica, outra resiste-lhe através da lentidão que devolve ao gesto fotográfico a espessura do tempo. O visitante percebe que este diálogo não é forçado, tratando-se apenas de colocar em confronto dois modos distintos de captura para pensar o significado de fixar o mundo nos dias de hoje.
Diante das imagens, a imprevisibilidade evocada por Apolinário revela-se como princípio estético estruturante. Cada fotografia parece carregar o silêncio de uma operação sem visores, sem lentes, sem pré-visualização — uma espécie de pacto com o desconhecido que, ao materializar-se, convoca o imaginário do visitante. Esta suspensão entre intenção e acaso produz um regime visual distinto do habitual consumo digital de imagens: aqui há falhas, derivas, difusões, zonas onde a luz hesitou e deixou marcas que são tanto ópticas quanto emocionais. No contexto do Ciclo LESTA e LENTA, a pinhole apresenta-se quase como um antídoto contra a aceleração permanente, não como rejeição do presente, mas como contraponto crítico. O que surpreende, no entanto, é perceber que essa lentidão não significa menos intensidade. Pelo contrário, há uma vibração particular nestas imagens, como se cada uma trouxesse consigo a memória da sua própria formação. A experiência de visita é, por isso, também uma experiência de reeducação do olhar: aprende-se a demorar, a observar a respiração da luz, a aceitar que ver pode ser um acto radicalmente lento.
No seu conjunto, o certame reafirma o papel do MIRA como espaço de experimentação e de confronto crítico entre práticas fotográficas. Este “funcionamento em espelho” entre duas open calls internacionais é revelador do espectro expandido da fotografia contemporânea. Se a fotografia mobile responde ao mundo com a rapidez que as sociedades actuais lhe imprimem, a fotografia estenopeica devolve a esse mesmo mundo uma imagem que parece emergir de um sonho, como bem refere Apolinário. O visitante sente essa dimensão onírica não como fuga, mas como outra forma de verdade: a verdade do tempo dilatado, da imagem que se forma devagar e que, por isso, resiste melhor ao esquecimento. Ao circular pela sala, ou vendo as imagens que vão sendo projectadas, percebe-se que cada fotografia é também um gesto de resistência a uma cultura visual saturada. Ao expor lado a lado duas formas extremas de produzir imagens, o MIRA não escolhe um caminho: convida-nos a pensar o intervalo entre ambos. E é nesse intervalo, onde a urgência e a contemplação convivem, que esta 11.ª edição encontra a sua força crítica e a sua relevância cultural.
Sem comentários:
Enviar um comentário