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domingo, 7 de dezembro de 2025

DANÇA: "F*ucking Future" | Marco da Silva Ferreira



DANÇA: “F*cking Future”
Direcção artística e coreografia | Marco da Silva Ferreira
Apoio artístico, apoio à dramaturgia | Catarina Miranda, Cristina Planas Leitão
Música | Rui Lima, Sérgio Martins
Desenho de luz | Teresa Antunes, Rui Monteiro
Interpretação | Catarina Casqueiro, Eríc Amorim dos Santos, Fábio Kraye, Doisy Bryan, Marco da Silva Ferreira, Matias Rocha Moura, Max Makowski, Nala Revlon
Direção de produção | Mafalda Bastos
60 Minutos | Maiores de 6 Anos
Teatro Rivoli - Caixa de Palco
05 Dez 2025 | sex | 19:30

“F*cking Future coreografa a fricção entre militância e militarização, explorando e desafiando os sistemas que moldam corpos e comportamentos. Num palco quadrifrontal, servindo-se desses mesmos sistemas, um colectivo marcha entre rigidez e diluição, disciplina e desejo, convocando novas formas de união e insurgência — permanecemos aqui, resistindo em movimento.”
Marco da Silva Ferreira

Depois da sua estreia na Bienal de Dança de Lyon, no passado mês de Setembro, “F*cking Future”, de Marco da Silva Ferreira, subiu ao palco do Teatro Rivoli ao final da tarde de sexta-feira, trazendo consigo um exercício de intensa e vibrante fisicalidade, a convocar territórios onde o corpo é matéria de urgência. Disposto num quadrado vivo, aberto em todas as direcções como se a proximidade do público fosse condição para que o manifesto respirasse, o espectáculo coloca em cena oito presenças pulsantes, como que à beira do colapso, numa coreografia feita de quedas, rotações, pausas e acelerações, que dão a ver o desassossego de um tempo hoje. Há na peça uma energia quase violenta, sem ser agressiva, antes uma vibração que arrasta para um transe partilhado. A música, a começar num batimento que mal se nota e que cresce até ao limite, opera como força centrífuga que organiza e desorganiza, que empurra os corpos para a exaustão e, ao mesmo tempo, para uma espécie de aliança inevitável. O que emerge é uma comunidade posta à prova em permanência, onde os códigos herdados - da marcha militar ao pulsar do “clubbing” - se desfazem e refazem num gesto insurgente, que questiona o futuro ao mesmo tempo que o acelera.

Se a coreografia incide sobre o excesso e a urgência, é na relação entre os corpos que a peça encontra a sua vibração mais íntima. O toque, o apoio fugaz, a oscilação entre segurança e ameaça, fazem do palco um laboratório emocional que não se esgota no elemento físico. Cada aproximação dos intérpretes ao público, cada olhar que se cruza, cada respiração audível na penumbra desenhada pela luz, produz um chamamento silencioso que nos vem dizer que o futuro se constrói na força de estarmos unidos. O desenho de luz, a recortar apenas fragmentos - um braço, um tronco arqueado, um salto que se desfaz na sombra - amplifica essa tensão entre o visível e o invisível, como se a humanidade do gesto estivesse sempre à beira de se perder. Há instantes em que a massa em movimento parece um organismo único, vibrátil, a vertigem do ritmo techno de mãos dadas com raízes mais antigas, quase tribais, evocando tradições que sobreviveram graças à adaptação e à mudança. No cruzamento entre resistência, desejo e fragilidade, revela a peça a sua força: a reivindicação de um coletivo que não teme afirmar que os afectos, também eles, são motores de transformação.

Quando os bailarinos invadem a plateia e avançam por entre os espectadores, o gesto é tudo menos intimidatório: É convite. Há algo de fantasmagórico, quase cerimonial, nesse movimento que aproxima intérpretes e público ao ponto de dissolver fronteiras. E é nesse instante que “F*cking Future” atinge o seu coração político — não o da militância como confronto, mas o da militância como desejo, como vontade partilhada. O espetáculo propõe um futuro que se escreve no agora, na aceleração dos corpos que recusam a apatia e afirmam o direito ao sonho, mesmo quando o mundo insiste em endurecer. A música e a coreografia, em permanente mutação, lembram que cada passo contém a memória de outros passos e que cada corpo é arquivo vivo de comunidades que lutam para existir. No final, resta a sensação de termos testemunhado um ritual de resistência sensível: uma celebração da diferença, um apelo à coragem de imaginar, um manifesto que nos devolve a crença de que os futuros, mesmo os mais improváveis, começam onde alguém decide tocar, olhar ou avançar sem medo.

[Foto: Ferreira Danse @ Blandine Soulage | https://www.ccb.pt/evento/fcking-future/]

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