O segundo dia de concertos do Ovar Expande teve para oferecer três propostas surpreendentes, mas com um notável sentido de complementaridade, próximas e distantes entre si ao mesmo tempo. Assumindo a figura de “irmão do meio” no alinhamento da noite, Ela Li ocupou a Sala Galeria da Escola de Artes e Ofícios para uma hora de concerto baseado no seu álbum “Choradeira” (2023). Com Zé Cruz no trompete e percussões e Luis Sanches na guitarra, a cantora mostrou o quanto as intensas vivências no lado de lá do grande lago Atlântico se mostram presentes na sua música, pontuada de ritmos quentes — da bossa nova ao funk, do groove afro-brasileiro à electrónica subtil —, movendo-se entre a leveza de um suave “sunset” e a profundidade das emoções mais genuínas. Essa mistura resulta numa música que se escuta com facilidade, mas que não deixa de surpreender pela riqueza de cores e texturas e pelos arranjos cativantes. Distante dos palcos há bastante tempo por questões de maternidade - “Vamos Lá Mudar a Fralda” terá sido a música que mais cantou nos últimos tempos -, Ela Li está de regresso e ainda bem. Fê-lo em Ovar, preenchendo uma boa parte do serão com um misto de descontração de um dourado pôr-do-sol e a profundidade de um olhar interior que faz do amor e da amizade o caminho a seguir.
Os de memória mais afinada lembrar-se-ão de Afonso Cabral na primeira edição do Ovar Expande, altura em que apresentou o seu projecto em nome próprio, depois de uma década à frente dos “You Can’t Win Charlie Brown”. E se o fez então em “versão reduzida” - pandemia “oblige” -, a noite de ontem foi de celebração com um regresso em força que juntou em palco os companheiros de estrada habituais: António Vasconcelos Dias (piano, rhodes, moog, guitarra acústica), Pedro Branco (guitarra eléctrica), David Santos (baixo), João Correia (bateria) e Inês Sousa (voz e sintetizador). Saltitando entre “Morada” (2019) e “Demorar” (2024), os seus dois trabalhos de estúdio até ao momento, Afonso Cabral mostrou à saciedade as suas qualidades de enorme cantautor, capaz de permanecer fiel a si próprio e explorar a língua portuguesa com frescura, elegância e sentido. Temas como “Entre as Palavras e os Actos”, “Resistir”, os inevitáveis “Morada” e “Demorar”, “Indivisível” ou um muito belo e significativo “Manel”, distinguem-se pela subtileza e pelo modo como articulam entre si forma e emoção, sofisticação e proximidade, se enraizam num minimalismo elegante e se mantêm relevantes numa altura em que o “indie” nacional busca novas vozes, novas texturas, outro nível de ambição. Um momento repleto de muita e boa música a encerrar uma noite rica em emoções.
Por razões óbvias, deixei para o fim o concerto de abertura do serão, preenchido pelo concerto de Bia Maria + Coro da Comunidade. O “óbvio” prende-se com o facto de eu próprio ter integrado o Coro da Comunidade e ter podido acrescentar ao sentir de um momento musical a emoção da cumplicidade e da partilha. A apresentar em Ovar “Qualquer Um Pode Cantar”, o seu mais recente álbum, Bia Maria foi capaz de unir a beleza da voz à força da comunhão colectiva num projecto que é um verdadeiro sopro de frescura no panorama da música portuguesa contemporânea. Enraizadas no cancioneiro popular, com um “cheirinho” de fado e de bossa nova, as suas melodias fazem da voz — da dela e de todos — instrumento primordial e elo de partilha. Com Alberto Hernandez na guitarra e Samuel Louro na bateria, a artista vestiu de cumplicidade e inclusão temas como “Roupa Velha”, “O Corpo”, “Aconchegos de um Sujeito”, “Marcha da Paridade” ou “Qualquer Um Pode Cantar”, juntando em palco um coro de dez pessoas de diferentes gerações e transformando o concerto num acto de encontro com o outro e consigo própria. A combinação de tradição e inovação, intimidade e comunhão, música e cidadania, resultou num trabalho vibrante de conhecimento, escuta, partilha e comunidade, ao qual o público não ficou indiferente. Entre o acto da escuta e o de cantar mediou um pequenino passo que fez de “qualquer um pode cantar” não apenas título, mas vibrante bandeira.
Sem comentários:
Enviar um comentário