“Aqui é uma vergonha passar a todas as disciplinas na escola. Quem faz isso nunca terá sucesso. Os líderes deste lugar só podem ganhar eleições se os seus discursos só tiverem disparates, e não podem ter uma única boa ideia senão, esquece, ninguém vota neles. Consegues imaginar? Um mundo inteiro governado por idiotas? Estás a dizer que sim com a cabeça, mas não fazes ideia nenhuma do que aqui se passa!”
“O tempo tem lá dentro uma espiral / uma espiral que se chama história / e que num andar natural / e por força de vontade / resolveu ter um capricho / chamado liberdade”. Quando o poema foi escrito (e cantado), os seus versos exprimiam um tempo de exaltação, em que dava vontade de abraçar, sorrir, viver e gritar “somos livres, não voltaremos atrás.” A espiral do tempo, porém, tem no seu mecanismo um pequeno botãozinho que, quando accionado, faz com que tudo rode tão depressa que rapidamente a transforma em espiral do medo. Terá sido assim em 1933, quando José Gomes Ferreira olhou em volta e viu um senhor que usava sempre os mesmos sapatos, a clamar “que [o País] obedeça quando se chegar à altura de mandar”. Daí nasceu o folhetim “As Aventuras de João Sem Medo”, dedicado aos seus dois filhos, alertando-os para aqueles que “sujam o mundo e odeiam a Imaginação”. Quase um século depois, Patrícia Portela encontra inspiração no livro de José Gomes Ferreira e oferece-nos um “Manual para Andar Espantada por Existir”, assumindo o seu espanto por uma estranha forma de vida e lembrando que “ter medo é ter coragem e que só tem coragem quem tem medo”.
“Perfilados de medo, sem mais voz / O coração nos dentes oprimido / Os loucos, os fantasmas somos nós / Rebanho pelo medo perseguido / Já vivemos tão juntos e tão sós / Que da vida perdemos o sentido”. A história que Patrícia Portela nos conta tem o seu início em Antuérpia, mas poderia ser em Rabo de Peixe, no Fundão, em Ovar ou em Chora-Que-Logo-Bebes, como a terra do herói das aventuras sem medo que inspiraram este livro. É lá que a vamos encontrar, João Medrosa que é, juntamente com “um amigo de longa data, uma espécie de cara-metade belga, de seu nome Peter De Bie (parece Pedro, A Abelha, mas Bie não quer dizer abelha, é pena!)”, João Sem Medo no gesto e na pose. Gostam de conversar, de passear, de inventar coisas juntos e de se desafiar um ao outro. Daí que um estranho muro altíssimo que topam numa rua da cidade seja motivo de espanto, até porque nas suas pedras está gravada a frase: “Proibida a entrada a quem não andar espantado por existir”. Começa aqui uma enorme aventura no seio da Floresta Branca, depois de ambos se atreverem a saltar o muro. Saltar o muro? Que digo? Saltar era no “João sem Medo”, do José Gomes Ferreira. Os tempos agora são outros e se o Harry Potter consegue atravessar o muro, como que por pura magia, os nossos heróis não lhe ficarão atrás.
“Viva, viva o cão raivoso / Tem o pelo eriçado / Seu dente é guloso / E o seu faro ajustado / Cão raivoso, cão raivoso, cuidado”. Estamos no interior da Floresta Branca e João Medrosa perdeu de vista o Abelha. Instada a escolher o caminho a seguir, opta pelo da Felicidade, como, aliás, qualquer um de nós optaria. Mas a felicidade que lhe querem impingir tem razões que a razão de João Medrosa despreza, a começar por uma personagem que parece saída de uma tela de Magritte e que apregoa que para se ser feliz é necessário perder a cabeça. Ou por um “par de sapatos de estilo inglês, de cabedal italiano, com excelente dentadura a apertar o tornozelo, também conhecidos por Sapatos de Salazar”, e que apregoa o andar, o pensar e o viver em círculos como único caminho para a felicidade. Entre paredes que se sentem sozinhas, colheres que piscam os olhos, fontes no meio do deserto, varinhas mágicas prontas a satisfazer todos os desejos e a casa da mariquinhas, o que Patrícia Portela nos diz é que tudo é possível no reino da imaginação. Deixemo-nos guiar por ela através de um mundo às avessas, dispostos a fazer algo tão necessário como enfrentar o medo. Imaginativo, irreverente, hilariante, visionário, delirante, inspirador, eis o Manual certo para quem acredita que “o sonho comanda a vida”. Ele leva-nos ao encontro desse outro botãozinho que permite inverter a espiral do medo e incita a lutar por igualdade e justiça, por uma “cidade sem muros nem ameias / gente igual por dentro, gente igual por fora”.
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