CONCERTO: “Cristo no Monte das Oliveiras”
Ludwig van Beethoven, “Christus am Ölberge” Op. 85
Orquestra Filarmonia das Beiras
Coro Voz Nua
Com | Regina Freire (soprano), João Barbas (tenor), Ricardo Rebelo (baixo), Aoife Hiney (direcção coral), Jan Wierzba (direção)
Igreja Matriz de Ovar
03 Mai 2025 | sab | 21:30
Beethoven é uma das figuras mais reverenciadas na história da música ocidental, estando as suas obras entre as mais executadas do repertório da música clássica. Porém, compreensivelmente ou não, são muitas as suas peças que foram caindo em desuso ao longo do tempo, acabando por ficar praticamente esquecidas. Está neste caso a oratória “Cristo no Monte das Oliveiras”, quase uma nota de rodapé em relação às grandes obras-primas corais do período tardio de Beethoven, nomeadamente a “Missa solemnis”, a 9.ª Sinfonia ou a ópera “Fidelio”. E, todavia, “Cristo no Monte das Oliveiras” é uma obra a merecer atenção pela sua enorme expressividade, atmosfera tensa e trágica, e realismo no retrato que faz de Cristo, da sua luta interior, sacrifício e redenção triunfante. Saude-se a Orquestra Filarmonia das Beiras e o seu Director Jan Wierzba pela ousadia em trazer para primeiro plano uma peça com tanto de raro quanto de extraordinário. Saudação que se estende a solistas, músicos e coro, pela enorme qualidade das interpretações e pela entrega absoluta à música em condições nada fáceis, com uma charanga a rufar nas alturas do outro lado da rua.
Com uma partitura para três solistas, coro e orquestra, “Cristo no Monte das Oliveiras” baseia-se num libreto de Franz Xavier Huber que Beethoven musicou nos primeiros meses de 1803, enquanto residia no Theater an der Wien. Conhecedor das oratórias de Haydn e Handel, compositores muito populares à época, Beethoven mostrava-se apostado em não se quedar na sombra dos seus predecessores, pelo que adoptou uma abordagem algo diferente para a sua obra. Em relação ao relato bíblico, Huber tomara muitas liberdades com o seu libreto, chamando para primeiro plano apenas três personagens: Cristo, o seu discípulo Pedro e um anjo. Em torno deles, o compositor criou um fabuloso conjunto de corais, com hostes de anjos, hordas ameaçadoras de soldados e uma poderosa irmandade de discípulos. Uma abertura apropriadamente sombria põe em movimento a oratória, com sinistros apelos de metais, juntamente com figuras rápidas de cordas e passagens líricas de sopros, dando a ver um Monte das Oliveiras lúgubre, envolto numa densa névoa, palco perfeito para a presença de um Cristo agónico, aterrorizado com o cálice que lhe é dado a beber.
Jan Wierzba vai guiando o público nas várias passagens da obra, ao mesmo tempo que explica as personagens que solistas e coro encarnam. Na voz de João Barbas, Jesus é retratado na sua figura humana, dilacerado pela dúvida até à aceitação do seu destino redentor. A profunda solidão em que caíra é interrompida pela chegada do anjo, interpretado por Regina Freire com uma bravura vocal convincente. Acompanhado pelo coro, o anjo tranquiliza Cristo, num quadro marcado por um sublime dueto. A transformação de Jesus, desde a inicial vulnerabilidade até à tranquilidade corajosa, assim como a presença divina do anjo, foram defendidos com requinte pelos dois solistas, excelentes na representação da enorme variedade e intensidade de estados de espírito que o quadro contempla. Beethoven musicou a detenção de Jesus com uma imaginação viva. Cantada por vozes masculinas, os soldados envolvem-se num contrapontístico jogo do gato e do rato, enraizado numa esplêndida dramaturgia. Fabulosamente interpretado pelo coro, o quadro da prisão foi mesmo um dos pontos mais altos da noite.
O terceiro solista, Pedro, surge apenas no quadro final. Na voz de Ricardo Rebelo, ele é a personificação da humanidade, com todas as suas emoções e motivações, forças e fraquezas. O trio final é o culminar dramático da oratória. A vingança é transformada em compaixão, quando a raiva de Pedro é acalmada por Jesus e pelo anjo. Aqui reside o triunfo final de Cristo. A oratória termina com um belíssimo final fugal para coro e orquestra, de enorme dinamismo e expressividade. Atenta, cuidada, musculada, a direcção musical de Jan Wierzba atingiu um plano de excelência, galvanizando todos os intervenientes e revelando-se determinante para uma atuação arrebatadora. Uma palavra também para Aoife Hiney e para o coro aveirense Voz Nua, excelentes na combinação de vozes e efeitos que em muito elevaram a prestação do conjunto. Um concerto memorável, num espaço com notáveis condições acústicas, a merecer um sublinhado do público, infatigável na calorosa ovação prestada no final.
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