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sexta-feira, 4 de outubro de 2024

TEATRO: "A Noite"



TEATRO: “A Noite”,
de José Saramago
Encenação e adaptação |  Paulo Sousa Costa
Assistência de encenação | Luís Pacheco
Interpretação |  Diogo Morgado, Jorge Corrula, João Didelet, Luís Pacheco, Elsa Galvão, Ricardo de Sá, Henrique de Carvalho, Sara Cecília, João Redondo
Produção | Yellow Star Company
90 Minutos | Maiores de 12 anos
FLO - Festival Literário de Ovar 2024
Centro de Artes de Ovar
21 Set 2024 | sab | 22:30


Redacção do Jornal de Lisboa, 24 de abril de 1974. Há no ar qualquer coisa de indefinido no momento em que se prepara o fecho de mais uma edição do jornal. Entre alterações de última hora e os habituais contactos com o exame prévio, as tensões avolumam-se e os conflitos estalam. De um lado, o chefe de redação e o diretor do jornal, submissos ao poder político, que normalizam a censura. Do outro, o jornalista idealista que luta pela verdade e que tem na redacção preciosos aliados nas pessoas da estagiária e do tipógrafo. O conflito ganha uma dimensão ainda mais dramática quando surge o boato de que poderá estar a acontecer uma revolução na rua. A agitação e o nervosismo crescem no seio do jornal, com uma parte dos jornalistas e tipógrafos a exigirem que os factos, se comprovados, sejam notícia de última hora. Do outro lado da barricada, tanto o director como o chefe de redação tudo fazem para desvalorizar a alegada convulsão social, na certeza de que não irão imprimir notícia alguma, nem que para isso tenham de alegar uma avaria nas rotativas. Está instalada uma micro-revolução na redacção.

Graças à atribuição do Prémio Nobel da Literatura, José Saramago tem uma enorme quota de responsabilidade no reconhecimento do romance escrito em língua portuguesa no mundo inteiro. Obras como “Ensaio Sobre a Cegueira”, “O Memorial do Convento”, “Jangada de Pedra” ou “O Ano da Morte de Ricardo Reis” são disso excelentes exemplos. Menos conhecidas e, simultaneamente, pouco valorizadas pela crítica, são as peças de teatro, apesar da sua importância no conjunto da obra do escritor. Está neste caso “A Noite”, texto de temática histórica que reflecte sobre a censura imposta aos meios de comunicação social, situação que Saramago viveu de perto. Na peça, a preocupação do autor não está em copiar o dia a dia de um jornal no período da ditadura, antes chamar a atenção para as relações de poder em que se fundava o Estado Novo nas mais variadas instâncias. Apesar de não se considerar dramaturgo (em entrevista a Carlos Reis, em 1998), José Saramago assina um manifesto fortíssimo de denúncia e revolta, olhando de perto as primeiras horas do dia inicial inteiro e limpo.

Integrando, muito a propósito, o programa da décima edição do Festival Literário de Ovar, “A Noite” foi levada à cena pela Yellow Star Company num Centro de Artes de Ovar com lotação esgotada. Seguros dos seus papéis, respeitando a intensidade dramática do texto e garantindo a necessária segurança e vivacidade nos diálogos, os actores souberam honrar a escrita de Saramago, acrescentando realismo à verdade histórica. No papel de Jerónimo, o chefe dos tipógrafos, Jorge Corrula representa bem a qualidade e versatilidade de um excelente naipe de actores, com a sua forte presença em palco e o cerrado sotaque alentejano. Visualmente precioso, o cenário coloca-nos no centro de uma redacção há meio século atrás, onde não falta o contínuo, a mancar de uma das pernas, figurando o estado de um país a duas velocidades, pobre e inculto, preso às glórias do passado e que, do presente, só tem os êxitos do Benfica para se vangloriar. Empolgante, o final lembra-nos aqueles que fizeram da resistência e da luta a sua bandeira, abrindo caminho à liberdade e à democracia.

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