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domingo, 29 de setembro de 2024

TEATRO: "Homens Hediondos"



TEATRO: “Homens Hediondos”,
de David Foster Wallace
Encenação, tradução, dramaturgia, vídeo, figurinos, cenografia | Patrícia Portela
Desenho de Luz | Cárin Geada
Desenho de Som | Miguel Abras
Interpretação | Nuno Cardoso
Produção | Teatro Nacional São João
105 Minutos | Maiores de 16 anos
Teatro Carlos Alberto
12 Set 2024 | qui | 19:00


Dois peixinhos nadam na companhia um do outro quando encontram um peixe mais velho que lhes pergunta: “- Que tal a água?”. Ao que os peixinhos respondem: “- Água? O que é a água?”. Mais do que uma parábola sobre aquilo em que vivemos mergulhados e do qual não nos damos conta, esta frase é um convite ao espectador a deixar-se tomar pela figura do outro como se dele próprio se tratasse. Reflectindo sobre as questões vulgares de um quotidiano vulgar, a peça mostra que homens hediondos podem ser pessoas banais, com quem nos relacionamos todos os dias, no trabalho, nos transportes, nos cafés, em casa, e não necessariamente criaturas feias, repugnantes, monstruosas. Que homens hediondos são “essa imensa maioria que perpetua os mesmos comportamentos e relações de poder, e cuja violência muitas vezes aceitamos em nome da estabilidade e do nosso estilo de vida”. É disto que nos fala a mais recente criação de Patrícia Portela, uma peça escrita a partir do livro de David Foster Wallace, “Breves Entrevistas com Homens Hediondos”. Nela, somos confrontados com a dúvida, a raiva e o desespero de alguém que se sente obrigado a tolerar um sistema que tão ativamente condena, que se sabe cada vez mais hediondo. Nela vemos que em nós habita uma parte desse alguém.

A encenação como a dramaturgia são dois aspectos fundamentais da peça, a merecerem nota máxima. O terceiro aspecto é a interpretação de Nuno Cardoso, num monólogo intenso e vivo, segurado com a raiva nos dentes e os nervos à flor da pele. Mas vamos por partes. Não é preciso conhecer o livro para se perceber que há aqui um grande trabalho em torno das personagens que o habitam. Concentrar numa figura única as ameaças de uma extrema solidão, as tensões que advêm da incomunicabilidade ou da incompreensão ou a ausência de lucidez num oceano de emoções contraditórias, e conseguir evitar que o monólogo caia na redundância ou na esquizofrenia, é quase um milagre, tantas são as armadilhas à espreita de um e do outro lado de uma corda necessariamente bamba. A descrição do que de mais bizarro pode haver nos mundos interiores, a representação que cada um faz de si próprio e a forma como supostamente é visto pelos outros, as palavras ditas que se repetem em contextos opostos, a interrogação sobre os sentimentos humanos em circunstâncias estranhas ou extremas e a enorme coerência de um todo fortemente incoerente, são marcas distintivas de um trabalho pensado ao pormenor, depurado e rigoroso, posto em cena como um dedo espetado onde mais nos dói.

Falo, enfim, de Nuno Cardoso e da sua capacidade de encarnar todas estas figuras sem cair no exagero ou no exercício fútil da stand up comedy. Evitando as ciladas do histrionismo, o “actor genérico” mostra-se sóbrio e seguro quando nos vem lembrar que há santos porque há, igualmente, demónios, e que uns e outros habitam em nós. Transmitir a urgência que sente em tocar o espectador, em partilhar com ele a vida, partilhar caminho, sem se meter na sua cabeça, é a força que o move. Maridos ausentes, pais ausentes, relações pessoais e profissionais tensas, violência familiar, abandono parental, depressão, reacções emocionais, redes de apoio e por aí fora, são temas atirados à cara do espectador como se de um jogo de acção-reacção se tratasse. Aqui, toda a banalidade pode transformar-se, de um momento para o outro, num caso muito sério. Afinal, como refere Nuno Cardoso, “assistir a uma peça de teatro é como levar o pensamento ao ginásio.” Ficamos com os rituais e as pulsões que suportam os jogos de sedução, com as diferenças e semelhanças entre o “porco básico” e o “grande amante”, com a pessoa de quem todos fogem, que se sente cada vez pior e a única coisa que faz é perguntar: “Gostam de mim? Gostam de mim? Gostem de mim!” Ficamos com um enorme momento de teatro.

[Foto: © Teatro Nacional São João | https://www.tnsj.pt/]

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