CONCERTO: Amaro Freitas
Ovar em Jazz 2024
Centro de Arte de Ovar
20 Abr 2024 | sab | 21:30
Não podia ter terminado da melhor forma a sétima edição do Ovar em Jazz. Sozinho em palco com o seu piano, Amaro Freitas ofereceu ao público uma noite inesquecível, fortemente espiritual, num despertar constante de emoções e sensações ao encontro da floresta amazónica e da sua biodiversidade. É lá longe, entre a estridência da vida animal e o cheiro intenso a terra molhada, o brilho da lua nas várzeas e a delicadeza da flor do aguapé, o encontro das águas e o poder incandescente dos espíritos encantados, que o compositor e pianista parte à descoberta de um novo reino de criação musical. Da impressiva exuberância da vida selvagem e do forte sentimento de pertença que as comunidades indígenas nutrem pela terra, nasce “Y’Y” (pronuncia-se “eey-eh, eey-eh”), o seu mais recente trabalho discográfico, no qual o artista rende homenagem à floresta e aos rios, num convite a “viver, sentir, respeitar e cuidar da natureza, reconhecendo-a como nosso ancestral”. Um disco que é também “um alerta para a necessidade de estarmos conscientes do impacto que causamos, a partir dos conceitos de civilização e modernidade que nos afastam dessa conexão, e da sua importância para o equilíbrio da vida no planeta”.
Fazem-se ouvir as primeiras notas e já os sentidos se apuram na certeza de esta poder vir a ser uma experiência única e irrepetível. Buscamos o Jazz, mas ele mostra-se esquivo, percebendo-se a espaços uma pitada de avant-jazz ou uma frase com ritmos do Caribe. Procuramos o Contemporâneo, mas é o Clássico que se impõe, em rigor e delicadeza. Julgamos abraçar o experimental, numa dimensão minimalista, mas é na música de raíz étnica, feita de magia e encanto, que desaguamos. Uma música que quebra os preconceitos e questiona as noções daquilo que o Jazz pode (ou deve) ser. Qualquer tentativa de classificar a música de Amaro Freitas esbarra na multiplicidade de texturas que a compõem, nos sons que são ecos, num piano preparado que se transforma em tamborim ou berimbau, numa kalimba que é gota de chuva ou grito da selva. Deixarmo-nos levar nas asas do sonho e do encanto é a solução. Fechemos, pois, os olhos e aceitemos os espíritos poderosos que voam ao nosso encontro. Sucedem-se os ritmos e harmonias complexas e é natural perguntarmo-nos como é possível tocar em dois compassos diferentes, um em cada mão. Terá Amaro Freitas dois cérebros?
Se com o anterior “Sankofa”, o pianista apostava na recuperação de um mundo ancestral, usando as lições do passado como farol no esforço de seguir em frente, agora, com “Y’Y” (uma palavra do dialeto Sateré Mawé, um código indígena ancestral que significa “água” ou “rio”), é possível ver temas que não são falados em português ou inglês, mas que fazem parte da construção de um conceito social solidamente entrosado. Daí que não espante a sua opção de entrelaçar neste projecto, tão significativamente, os conhecimentos mais antigos. Isto torna-se particularmente evidente no tema que dá nome ao concerto e que procura traduzir a força ancestral do encontro das águas dos rios Negro e Solimões em dois movimentos opostos, as vocalizações carregadas de eco a soarem como cânticos do passado. Tema final do alinhamento, “Gloriosa” - uma homenagem a Rosilda, a mãe de Amaro Freitas, suporte e fonte de inspiração musical desde a infância - teve o condão de juntar ao piano as vozes do público, num momento de espiritualidade e cumplicidade maior. Público que, com as gargantas afinadas, reclamou um “encore” no qual as vozes voltaram a ser postas à prova. O final perfeito de um Ovar em Jazz mais consolidado, mais forte, mais livre e vivo. Um Ovar em Jazz maior!
[Foto: Ovar/Cultura]
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