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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

CERTAME: Festival Literário Correntes d'Escritas



CERTAME: Festival Literário Correntes d’Escritas
Póvoa de Varzim e Lisboa, vários locais
17 Fev > 26 Fev 2024


Cumprindo um hábito que começa a cristalizar-se em vício, regressei este sábado à Póvoa de Varzim e às Correntes d’Escritas. Sabia que tinha à minha espera duas mesas literárias, várias apresentações de livros, duas exposições e, quem sabe, uma peça de teatro. Haveria a oportunidade de comprar alguns livros e de ver alguns deles com as dedicatórias dos respectivos autores. Teria, sobretudo, a possibilidade de mergulhar nesse ambiente fantástico de celebração do gesto e da palavra, rodeado de amigos e de gente que tanto admiro. E assim foi, o programa cumprido na íntegra (teatro incluído), com pausa breve para uma francesinha no Ritz e o “bónus” de ter sido fotografado pelo Daniel Mordzinski e pela Maria do Rosário Pedreira (!).

Sonhado como plataforma de diálogo entre autores de várias geografias das línguas portuguesas e castelhanas, o Festival Literário Correntes d’Escritas conheceu a sua primeira edição em 2000, ano do centenário da morte de um dos filhos mais diletos da Póvoa de Varzim, Eça de Queirós. De Abdulai Silva a Xavier Queipo, ano após ano por aqui foram passando cerca de mil autores, fazendo da Póvoa o centro do debate da Cultura e do pensamento das Letras no país. Ao completar 25 edições, o tempo é de celebração, irmanando na festa e na alegria os 50 anos de elevação da Póvoa de Varzim a cidade e do 25 de Abril. Daí que a liberdade e a escrita enquanto veículo de resistência e luta tenham sido o denominador comum de um vasto programa que reuniu mais de 120 personalidades ligadas às letras, distribuindo-se por mesas literárias, lançamentos de livros, residências, performances, concertos, exposições, um 1º Encontro de Tradutores, a habitual Feira do Livro e muito mais.

Inspirada no verso de um poema da “desobediente” Maria Teresa Horta – “deu-nos abril o gesto e a palavra” –, a mesa da manhã convocou o melhor dos seis participantes e do seu moderador, João Gobern. António Mota partilhou memórias de infância na casa do Adrianinho e com a Senhora do Padre. Vera dos Reis Valente trouxe-nos um poema magnífico – “[Abril] Deu-nos paz / deu-nos mais alegria / (…) mas não nos deu a garantia / de que outros ditadores / armados em bons senhores / dizendo-se salvadores / não ganhem a próxima eleição”. Joaquim Arena mostrou a sua estranheza por o 25 de Abril não ser celebrado nas antigas colónias e, com ele, o gesto e a palavra liberdade. Convocando a sua faceta de leitora – “acima de tudo sou uma leitora” - Pilar Adón falou da importância de poder participar nas obras que lê, acrescentando que é isso que procura oferecer enquanto autora. Rui Zink falou dos vários privilégios de ter vivido o 25 de Abril, um dos quais foi ter participado no primeiro 1º de Maio “de mãos dadas com a minha mãe”. Enfim, Anabela Mota Ribeiro, “filha desse dia inicial”, trouxe-nos “a inscrição da ditadura sobre o corpo das mulheres” e a revolta de, 50 anos passados, persistir a diferença entre homens e mulheres, vertida em injustiça e desigualdade.

Passa pouco das duas da tarde e o espaço fronteiro ao Cine-Teatro Garrett fervilha de gente que aguarda pela reabertura de portas. As Correntes são “o lugar onde vivos e mortos se encontram”, como bem observou Luís Osório. É nisto que pensamos quando cruzamos o olhar com o daqueles que nos rodeiam e percebemos que Luis Sepúlveda ou Ana Luísa Amaral, Nélida Piñon ou José Saramago, ainda se passeiam por aqui.

Sérgio Godinho, Fausto Bordalo Dias e José Mário Branco deram o mote para a primeira mesa da tarde, a única à qual pude assistir. Uma mesa em “maré alta”, iluminada pelo verso “a liberdade está a passar por aqui” e moderada por Henrique Cayatte. Francisca Camelo agradeceu a Celeste Caeiro “pelas flores a calar o sangue”, mas interrogou-se se “conseguiria hoje a Celeste distribuir cravos nesse arrebatador gesto de alegria sem falir o negócio de um ano num dia só.” Luís Osório homenageou Fernando Giesteira, José Barneto, Fernando dos Reis e José Arruda, “os quatro que há quase 50 anos saíram para a rua sem saber que aquele seria o último dia das suas vidas, os que não chegaram a saber o que era a liberdade.” Rosa Alice Branco lembrou “tantos anos a falar pela calada” e exortou a estarmos atentos às mãos alheias que trabalham na sombra: “E se adormecerem, deixem os vossos ouvidos à escuta, porque a liberdade é a única melodia do amanhecer.” Estreante nas Correntes, Telma Tvon fechou a mesa com uma intervenção inflamada, falou dos seus medos, das suas vontades, das suas verdades, dos seus sonhos de mulher, “escuramente empoderada, mais forte, mais resiliente, mais comunidade, mais poder, mais preta.” São assim as minhas Correntes, minha liberdade, meu Abril.

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