DANÇA: “Corpo Clandestino”
Direcção artística | Victor Hugo Pontes
Cenografia | F. Ribeiro
Música | Joana Gama, Luís Fernandes
Direcção técnica e desenho de luz | Wilma Moutinho
Figurinos | Cristina Cunha, Victor Hugo Pontes
Interpretação | Ana Afonso Lourenço, Andreia Miguel, Gaya de Medeiros, Joãozinho da Costa, Mafalda Ferreira, Paulo Azevedo, Valter Fernandes
Direcção de produção | Joana Ventura
Centro de Arte de Ovar
10 Nov 2023 | sex | 21:30
Quando as luzes se extinguem na sala e deixam o palco a descoberto, percebemos que a sua nudez está povoada de vultos. Naquelas vestes que cobrem os corpos e remetem para uma cultura diversa, há uma estranheza a abater-se sobre nós. Num primeiro vislumbre, algo nos diz que a mulher está no eixo da diferença, mesmo que venhamos a ver mais tarde que a diferença está por toda a parte e que aquilo que nos separa é, justamente, o que mais nos aproxima uns dos outros. Altos, baixos, gordos, magros, brancos, pretos, elegantes, disformes, os vultos vão-se dando a conhecer nos movimentos que ensaiam e depois encaixam, como se de um corpo apenas se tratasse: sinérgico, solidário, cúmplice. Quando as vestes caem, a estranheza dá lugar ao espanto. Sujeito e complemento de si próprio, o corpo cresce e multiplica-se, prende e liberta, encolhe e amplia-se numa respiração que é só sua. Combina gestos, adopta formas, assume a sua identidade, toca o céu dos seus próprios limites, ganha asas e faz-se livre.
Estranheza. Diferença. Movimento. Nudez. Corpo. Em conjunto, estas cinco palavras definem a essência de “Corpo Clandestino”, extraordinário espectáculo de dança que faz mais pela afirmação das liberdades individuais e pelo direito à diferença do que mil campanhas de sensibilização para a necessidade de sermos mais empáticos e compassivos uns com os outros, mais eficazes na construção de um mundo que se quer justo e livre. Apontando o dedo aos padrões de normalidade pelos quais se regem as sociedades actuais, pondo em causa verdades e consequências, a peça quebra com os tabus, faz do preconceito a face mais visível da diferença e estilhaça em mil pedaços o dogma e a norma. A superação afirma-se na simplicidade de uns dedos que percorrem um corpo, na disponibilidade de umas mãos que se dão ou de uns braços que prendem com força, na complexidade de um coto tornado funcional pelo crer e pela vontade. Nunca o movimento teve tanto significado, nunca o gesto foi tão expressivo.
Confesso que não estava à espera de ver o que vi. Victor Hugo Pontes e a Nome Próprio há muito que me habituaram a entender a dança como um território de causas no qual a palavra adquire relevância e se assume como parte maior de um espectáculo cuja preponderância associamos à expressão corporal, ao gesto e ao movimento. Depois de “Margem” e de “Porque É Infinito”, era essa a minha expectativa. Neste “Corpo Clandestino”, porém, a fala está praticamente ausente, e só nos babélicos quadros finais, quando as máscaras caem em definitivo e já nada esconde aquilo que se é realmente, surge feita de sons guturais, ininteligíveis, sinónimo de raiva, impotência, incomunicabilidade. É o corpo que, clandestinamente, se ergue como lugar da fala, da expressão de desejos e afirmação de vontades, ansioso por mostrar aquilo de que é capaz. Cabe, enfim, uma palavra para o trabalho de interpretação a cargo de sete talentosos bailarinos / actores. Não distinguirei um em particular, de tal forma foram brilhantes de expressividade e entrega. Distinguirei, sim, a expressão da sua felicidade nos sorrisos de cada um. É meu o sorriso deles. É deles o meu sorriso.
[Foto: Ovar/Cultura | https://www.facebook.com/ovarcultura]
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