TEATRO: “Salomé”,
de Oscar Wilde
Encenação, cenografia, figurinos e desenho de luz | Monica Calle
Tradução | Joana Frazão
Interpretação | João Cravo Cardoso, Johann Ebert, José Miguel Vitorino, Maria Teresa Projecto, Miguel Fonseca, Mónica Garnel
Co-Produção | Casa Conveniente / Zona Não Vigiada, Teatro Aveirense
Teatro Nacional S. João
120 Minutos | Maiores de 16 anos
Teatro Nacional São João
11 Nov 2023 | sab | 19:00
“É monstruosa, a vossa filha; digo-vos que é monstruosa. Na verdade, o que ela fez é um grande crime. Tenho a certeza de que é um crime contra um Deus desconhecido.”
Nua, coberta de lama, o olhar perdido num ponto indefinido, a mulher parece prestes a desabar. O corpo treme incoercivelmente, a respiração é ruidosa. Do outro lado, a voz de quem tudo manda e tudo pode acena-lhe com metade das riquezas do reino se dançar para ele. A respiração torna-se mais rápida, acentuam-se os tremores. Recusando de início, a mulher acaba por ceder e, agora, está prestes a fazer-se cobrar pelos seus serviços. Na plateia, todos sabemos que a mulher recusará as riquezas, exigindo apenas a vida de um homem. Espera-se que profira as palavras terríveis, mas por enquanto apenas se escuta o seu respirar, mais rápido e mais estertoroso a cada segundo que passa. A inquietação e a angústia invadem a sala, à medida que o tempo vai perdendo a sua dimensão. O mal faz-se palpável, a espera dói. Um coro operático acentua as notas de tragédia quando a voz da mulher se faz, enfim, ouvir. “Quero que me dês imediatamente, numa travessa de prata, a cabeça de Iocanaan”, são as suas palavras.
Peça da autoria do escritor e dramaturgo irlandês Oscar Wilde, “Salomé” foi escrita originalmente em francês e publicada em 1891. Num único acto, conta a história bíblica de Salomé, enteada do tetrarca Herodes Antipas, que para grande desgosto do seu padrasto e para o deleite da sua mãe Herodias, pede a cabeça de Iocanaan (João Batista) numa escudela de prata, como prémio por ter dançado a dança dos sete véus. Foi Salomé e os seus abismos que Mónica Calle, a convite do Teatro Nacional São João, levou à cena, carregando de dramatismo uma narrativa marcada pela obsessão e pela soberba, pelo poder e pela vingança. Uma história muito simples, uma das mais conhecidas dos evangelhos do Novo Testamento, posta em palco com a mão de ferro de quem sabe, como poucos, erguer sobre o mesmo eixo a exigência e resistência física e uma enorme carga emocional baseada na palavra e no gesto. O resultado é avassalador, a chuva e a lama que cobrem os corpos de negro como metáfora de todas as maldades do mundo.
A água que se mistura com a terra, o fumo e o cheiro a enxofre, a lama que tudo cobre, o ar penumbroso, a música de Strauss, o choro, o sangue, a morte. Os elementos da tragédia encontram nas capacidades físicas e na qualidade performativa dos actores a combinação ideal. Negro é o cenário e todos os seus adereços, como negro é o coração do homem. Volto ao clímax da peça, àquele momento em que Mónica Garnel, no papel de Salomé, põe de pé a sua vingança. Incongruente e absurdo, o pedido traz com ele a vaidade, o orgulho, a presunção. Naquela respirar aflitivo, que parece não mais ter fim, desenha-se, afinal, uma diabólica gargalhada. A gargalhada de quem soube levar por diante os seus intentos, pondo cobro às pulsões que a dominaram. A gargalhada dos carrascos, aos pés dos quais os inocentes continuam a cair a cada dia: Alcindo Monteiro, Marielle Franco, Giovani Rodrigues, Musso, Gisberta Salce Júnior, Bruno Candé, a pequena Joana Cipriano...
[Foto: Teatro Nacional São João | https://www.tnsj.pt/]
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