EXPOSIÇÃO: “Portreto de La Animo Art Brut etc.”
Colecção Treger Saint-Silvestre
Curadoria | António Saint-Silvestre
Museu Nacional Soares dos Reis
13 Jul > 12 Nov 2023
A primeira vez que visitei o Centro de Arte Oliva constituiu um momento marcante a todos os títulos. Desde logo pela inegável qualidade e valor artístico das obras que integram a Colecção de Arte Moderna e Contemporânea Norlinda e José Lima, mas sobretudo pelo fascínio que me causou a Colecção de Arte Bruta / Outsider Treger Saint-Silvestre, uma das mais importantes do seu género a nível mundial. Revisitar esta última colecção tem sido motivo de deslocação frequente a São João da Madeira e, mais recentemente, ao Porto onde, no Museu Nacional Soares dos Reis, está patente um vasto conjunto de peças provenientes da colecção e que se cruzam com obras congéneres pertencentes ao acervo do museu. É o reencontro com as cidades imaginárias de Carlo Franco Stella, a depuração e simbolismo de Guo Fengyi, o surrealismo de Agatha Wojciechowsky, as figuras antropomórficas de Jaime Fernandes ou a fotografia de Tomasz Machciński, em intenso diálogo com trabalhos de José de Guimarães, Sarah Affonso, Carla Gonçalves, La Mère François ou o escultor José Joaquim Teixeira Lopes, de quem podemos apreciar a máscara mortuária de Soares dos Reis.
Visitar “Portreto de La Animo Art Brut etc” - do esperanto “retrato da alma” - é penetrar num mundo inquietante e deixar-se conduzir por pulsões dificilmente inteligíveis em contextos de normalidade. Ao visitante pede-se mente aberta para abraçar mentes fechadas sobre si próprias, as mais das vezes torturadas, em sofrimento, mas capazes do milagre da criação como forma de se apaziguarem e libertarem. Corpos desproporcionados, membros contorcidos, rostos escarificados, seios pesados, são traços dominantes no conjunto das peças expostas e que, remetendo para o retrato ou o auto-retrato, são a expressão do mundo interior de cada um dos artistas, oferecendo leituras com tanto de estimulante como de perturbador. A leitura das legendas que acompanham cada uma das peças faz com que o léxico da exposição se alargue a termos directamente relacionados com a saúde mental, da bipolaridade à esquizofrenia, das fobias às dependências químicas, dos transtornos obsessivo-compulsivos ao stress pós-traumático. Está aberta a discussão e reflexão sobre saúde mental sugerida pela arte e pelos artistas.
Cunhado por Jean Dubuffet em 1946, o conceito de Arte Bruta tem na razão uma das suas mais importantes fronteiras. Não falo apenas de alterações de ordem psicológica, mas também da marginalização social. Veja-se o caso de Prophet Royal Robertson que, abandonado pela mulher, desenvolveu um delírio obsessivo, mas notavelmente criativo, que o levou a decorar o interior e o exterior da sua casa com desenhos fantasmagóricos denunciando a traição de que foi vítima. No campo do auto-retrato, atente-se nos trabalhos de Josef Hofer, nascido com deficiência mental, dificuldade auditiva e mobilidade reduzida e que só aos 37 anos começou a desenvolver a sua criatividade. Reforçando a ideia do auto-retrato como fonte de cura dos traumas, veja-se o trabalho de Dusan Kusmic, cuja experiência de vida traumática como refugiado num campo de deslocados na Sicília e as suas lutas perante dificuldades de linguagem, pobreza e isolamento social, levaram à criação de trabalhos com diversos materiais, como o papel de parede, objetos encontrados e comida. Motivos não faltam para uma visita ao renovado Soares dos Reis. É obrigatório mergulhar nestes “retratos da alma”.
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