Páginas

domingo, 3 de setembro de 2023

CONCERTO: Lula Pena



CONCERTO: Lula Pena
Centro das Artes e do Espectáculo de Sever do Vouga
02 Set 2023


“para o mundo não pisar às avessas
o negro que sou inclusive em alma
a custo forçaram a ver navios”

Noite de sábado. Penumbrosa, enigmática, Sever do Vouga é uma vila parada. Para muitos é fim de férias. Vêem-se algumas pessoas no interior dos cafés, na televisão o Benfica a jogar. Há sardinhada “ali ao lado”, na Silva Escura. O vento traz com ele o som do repuxo no lago e há no ar um cheiro de tempestade. Lula Pena pisa o palco do Centro das Artes e do Espectáculo de Sever do Vouga, perante uma plateia de não mais de vinte pessoas. A artista dirige-se ao público e fala de viagens, de um mapa com várias opções, de jogo, de caminhos novos que vão dar a velhos lugares, de improviso e desafio. De intimismo. De viagens, novamente. Viagens “por muitos países, muitas luas”. Viagens por geografias da alma, um “archivo pittoresco” que somos convidados a descobrir como nosso: Nas linhas que acompanhamos como nas mudanças de rumo ou direcção, na amplidão onde se abrigam novos horizontes como no desenho de rios e mares navegados como se fora a primeira (ou a última) vez. De mãos dadas com o sonho, aceitamos o convite, prontos para lançar a âncora em lugares do coração.

A guitarra primeiro, de seguida a voz. Fechados nos limites que adivinhamos em nós infinitos, somos envolvidos por sonoridades únicas que não conhecem fronteiras. Seguimos numa hipnótica digressão pelas costas da Sardenha ou pela longa cordilheira andina, banhamo-nos no Amazonas, vamos do Algarve ao País Basco e chegamos a terras do Novo Mundo. Escutamos o grego e o sardo, o adocicado português do Brasil, o inglês ou o francês, o espanhol ou o italiano. Bebemos as palavras de Jerusa Pires Ferreira, Ederaldo Gentil ou Elomar, de Benedicte Houart, Manos Hadjidakis, Salvatore Sini, Louis Scutenaire ou Violeta Parra. Diluídos num peculiar cosmos, percebemos quão próximos podem estar o “phado” do tango, a bossa nova da canção francesa, o flamenco da morna. Numa viagem sem interrupções, vogamos pelo fluir de línguas, sons e ecos, ajustamo-nos aos ritmos e às melodias. Sentimos este mundo cada vez mais nosso, a distender-se e a contrair-se na voz grave da cantora, no seu dedilhar, na relação alquímica com a guitarra, milagre dos sentidos feito de carne e espírito.

Voltei de novo a Lula Pena, ao seu / nosso “Archivo Pittoresco” e foi como se fosse a primeira vez. Natural, verdadeira, sedutora e livre, ao longo de uma hora cantou e encantou, a sua viola simultaneamente instrumento de cordas e de percussão a desenhar pontes, sempre pontes - “Rose eu peço a Deus que os dias seus / Sejam vividos pra jamais eu lhe encontrar nesta tristeza / Incontida, tão esquecida de viver…”. Encadeando um conjunto de dez canções como se fossem uma só, ligando fragmentos e estabelecendo confluências, Lula Pena voltou a sublinhar a sua ideia de um mundo sem muros nem fronteiras. Um mundo de criação e liberdade, feito de intensas melodias, timbres harmoniosos e ritmos apaixonantes, num todo sugestivo e inspirador. Noite sublime, noite de magia, de felicidade e júbilo, a fruição e o prazer a tomarem conta de nós, a subirem devagarinho, em passos lentos, a dissiparem a nossa cruz do desalento, a porem-nos na boca um sorriso e no peito um calorzinho bom. Sentimos próxima Ítaca, mas não queremos apressar a viagem.

Sem comentários:

Enviar um comentário