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sábado, 2 de setembro de 2023

LIVRO: "Kalunga"



LIVRO: “Kalunga”,
de Manuel Rui
Ed. Editora das Letras, 2018


“Quando a igreja ficou pronta, o ajudante de Matias, que este explicou ao soba tratar-se do sacristão, fez tocar os sinos e toda a gente correu para a igreja e, estupefactos, foram assistindo ao ritual do que sobressaía o cantar dos portugueses, intérpretes, guias e uma boa parte dos libertos que o padre explicou terem sido evangelizados ao longo da caminhada e, ainda, na homilia, de forma emocionada, fez saber que a sua missão era ensinar a fé, o amor ao próximo mas a ambição do rei português, da corte e mercadores, usava a religião para juntar a cruz à espada e assim fazer os negros escravos para trabalharem nos engenhos de açúcar, plantações de tabaco ou nas minas de ouro ou pedras preciosas.”

Angola, primeira metade do século XVII. Uma caravana de invasores, chefiada pelo capitão Silvestre, chega à embala do soba Lukamba. Em nome de Deus e de El-Rei de Portugal, vêm em busca de força de trabalho jovem, sujeitando-os a uma dura marcha até Luanda e uma travessia mortífera do grande mar Atlântico nos porões dos barcos tumbeiros, antes de chegarem aos engenhos de cana-de-açúcar do Brasil. Esta não é a primeira vez que a embala é visitada e o soba sofre ainda o desgosto de ter visto o filho e a nora serem aprisionados e feitos escravos. Por esse motivo, responde em umbundo a Silvestre como quem já nada tem a temer, mas o intérprete faz uma tradução contrária das suas palavras e salva-lhe a vida, a sua e a dos restantes velhos da embala. Este é o começo de uma saga que irá consagrar Tanu, neto de Lukamba, como um justo e destemido chefe guerreiro, e os Elavoco, o seu grupo, a erguerem-se na sua coragem e a serem celebrados e mitificados pelos contadores de histórias que se encarregarão de ampliar os seus feitos e de os espalhar pelas sete partidas do mundo.

Intenso e vibrante, “Kalunga” é um épico centrado num período negro da história da humanidade, ao encontro daqueles que, à mercê dos interesses dos poderosos, se viram desapossados dos seus pertences, apartados das suas famílias, ultrajados na sua dignidade e coarctados no direito à própria existência. Narrando a história fantástica de Tanu e dos Elavoco, Manuel Rui subverte as narrativas normalizadoras e glorificadoras da cartilha imperialista, colocando em perspectiva os acontecimentos na óptica do agredido. Ao fazê-lo, acentua os valores da ética e do respeito pelo próximo, da honestidade, da solidariedade e da educação, ao mesmo tempo que levanta o véu sobre os “kalunga”, os descendentes de africanos escravizados que formaram comunidades auto-suficientes e que viveram mais de duzentos anos isolados em regiões remotas do Brasil, resistindo aos agressores portugueses e holandeses. É significativo que Manuel Rui centre os momentos finais da acção no Quilombo dos Palmares, o maior quilombo da história da escravatura no Brasil, também conhecido como “pequena Angola” e que chegou a contar no seu auge com cerca de vinte mil habitantes, muitos deles escravos fugidos dos engenhos de Pernambuco.

Prepare-se o leitor para uma lição de história. Em “Kalunga”, o autor não só contextualiza os tempos da narrativa, como se apropria dos vários momentos da acção para realçar as contradições em que assentam as prerrogativas do agressor. Particularmente significativa é a menção feita ao Padre António Vieira, visto por muitos como um humanista, mas cujas palavras e acções revelam a sua faceta de esclavagista soez e hipócrita. Em contrapartida, a figura do padre Matias, também ele um jesuíta, estabelece a ponte entre as crenças animistas e os princípios de bondade e de justiça que suportam a religião cristã. Manuel Rui não poupa nas descrições quando os assuntos são os usos e costumes, as tradições, a forma de vestir, os instrumentos musicais ou a própria gastronomia. São de uma enorme beleza as imagens que nos chegam por intermédio da sua escrita, seja o nascimento de uma criança ou uma aldeia inteira a recitar a tabuada. Os fenómenos de aculturação não escapam ao olhar do escritor, a ponte entre Portugal, Angola e o Brasil feita de deliciosos pormenores linguísticos (a “fuba” angolana que no Brasil é “fubá”, por exemplo). Hino ao ecumenismo e uma enorme lição de vida, “Kalunga” é um livro essencial.

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