LIVRO: “Paisagem Portuguesa”,
de Duarte Belo (fotografia) e Álvaro Domingues (texto)
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Outubro de 2022
“A estrada e a viagem são o inverso do fixismo e da permanência dos lugares. A estrada é o longe, o ruído que se liberta do inconformismo, da dúvida, da espiritualidade de uma geração que viveu durante a Segunda Grande Guerra, que conheceu a mensagem trágica da destruição atómica, o fim da inocência sobre a tecnologia, o adormecimento vazio do consumismo, a ilusão da razão e a fé, como diria Kirkegaard, numa objectiva incerteza.”
Um olhar menos atento sobre “Paisagem Portuguesa” leva a que façamos dele um álbum de fotografia. Página após página, fixamo-nos em marcos geodésicos com bandeira a meia haste, no que resta de um povoado da Idade do Ferro, numa Sé Catedral construída sobre a rocha, em passadiços à beira-mar plantados, num toco de sobreiro a ser descortiçado por três homens, nos silos enormes como “catedrais tubulares” na imensidão da planície alentejana, em ilhas que escaparam ao afundamento “depois que Pangeia começou a rachar vai para 300 milhões de anos”. Ao todo são 141 fotografias onde se procura sintetizar toda a diversidade e complexidade da paisagem portuguesa. Por isso, a “leitura” destas fotos será sempre um desafio, à memória como aos sentidos. No jogo das comparações, vamos da Praia da Rocha ao Casal da Mira num aglomerado de casas, de Trás-os-Montes ao Algarve numa flor de amendoeira. Passamos pelas imagens em busca de lugares nossos. Topamos com a central solar fotovoltaica da Amareleja, as Portas do Sol de Santarém ou o cedro-do-mato da Ilha das Flores e sorrimos. Sorrimos mais ainda, completamente surpresos, ao fazermos na Ria de Aveiro uma casa de Socorro a Náufragos que, afinal, se situa na Ria Formosa.
As imagens não dispensam as palavras, por muitas mil que cada uma delas valha. E, assim, Álvaro Domingues acrescentou-lhes o texto, enriquecendo-as com a sua visão aguda, o seu apurado sentido crítico, a justeza das suas observações. Também a sua ironia (até porque há ali fotografias que estavam mesmo a pedi-las). São textos de uma enorme riqueza, que fazem a ponte entre o antes e o agora, ao mesmo tempo que levantam o véu sobre parte do muito que podemos esperar, herdeiros que somos “de excesso de identidade, mitos, lendas, narrativas, imagens do país à beira-mar plantado, pobre e feliz, descalço e trabalhador, habitando a terra abençoada dos egrégios avós”. Entre o futuro incerto e o passado em fuga, o presente mostra-se diverso e faz-se de espaços verdes e frutos vermelhos, antenas de telecomunicações e moinhos de vento, grandes lagos e monocultura intensiva, Fitbit Sense e monumentos megalíticos, aquecimentos globais e terras com pouca sorte. São marcas destes “tempos de identidades múltiplas, circulação rápida de referentes globais, pluralismo, metamorfoses tecnológicas e rupturas velozes e drásticas, dissipações e simultaneidade de contrários.”
Da mistura de imagens de enorme significado com prosa tão sedutora e tão rica de sentido resulta um livro verdadeiramente precioso. Um livro que nos ajuda a compreender que “por mil razões e mais uma, estamos agora num tempo em que o Estado, a Nação, o Território, a Paisagem, a Identidade e outras designações respeitosamente postas em maiúsculas, não correspondem a nenhuma representação ou realidade estável e consensual.” Isto é, afinal, o que Álvaro Domingues nos anda a dizer desde, pelo menos, esse magnífico ensaio sobre a metamorfose da urbanização que é “A Rua da Estrada”, livro publicado em 2009. Também Duarte Belo, cujo espólio de quase dois milhões de fotografias constitui um precioso mapeamento fotográfico do espaço português levado a cabo ao longo de mais de três décadas. Uma síntese destes seus trabalhos podemos encontrá-la neste “Paisagem Portuguesa”. Imagens e textos que não se mostram só porque sim, avessos ao conceito turistizado (e turistizante) de paisagem, que inquietam e interrogam, que desafiam e nos fazem reparar nas coisas com olhos de ver.
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