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terça-feira, 5 de setembro de 2023

LIVRO: "Um Detalhe Menor"



LIVRO: “Um Detalhe Menor”,
de Adania Shibli
Título original | 2017, تفصيل ثانوي
Tradução | Hugo Maia
Edição | Cecília Andrade
Ed. Publicações Dom Quixote, Março de 2022


“Na realidade, a missão a que me proponho ultrapassa completamente as fronteiras das minhas capacidades. O facto de a rapariga ter sido morta no dia que será, um quarto de século depois, o do meu nascimento não significa de forma alguma que a morte dela me diga respeito ou que se estenda à esfera da minha vida, tornando-se para mim um dever dar voz à versão dela. Mais, eu própria não o poderia fazer, com todo o meu gaguejo e balbucio. Em suma, é absolutamente inútil sentir-me responsável por esta rapariga, pelo facto de ela ser uma desconhecida e de permanecer uma desconhecida cuja voz ninguém ouviu. Para além disso, já há uma quantidade insuportável de desgraças que as pessoas têm de enfrentar nos dias de hoje, não há por isso qualquer necessidade de ir à procura de mais no passado. Tenho de esquecer totalmente o assunto.”

Lembrada pelo povo palestiniano como “a catástrofe”, a guerra que vem opondo, de forma quase ininterrupta, Israel e Palestina, teve o seu início em 15 de Maio de 1948, logo após a declaração de independência do Estado de Israel. O livro leva-nos, numa primeira parte, ao quente mês de Agosto de 1949 e às areias do Deserto do Negueve, junto à fronteira com o Egipto. A guerra chegou ao fim, mas a tensão latente entre judeus e árabes promete reacendê-la a qualquer momento. Chefiado por um capitão de poucas falas, um contingente israelita instala-se junto às ruínas de uma habitação, testemunhas dos ferozes bombardeamentos do início da guerra. Ali irão interceptar uma caravana de beduínos e dizimá-la. Uma jovem sobrevive ao massacre, mas é capturada e violada repetidamente, para depois ser morta e enterrada na areia. Muitos anos mais tarde, uma mulher descobre, de forma casual, uma breve referência a este crime e decide investigá-lo. Tivera lugar no dia 13 de Agosto de 1949, precisamente vinte e cinco anos antes de ela nascer. Um detalhe menor.

Ler “Um Detalhe Menor” é ler o conflito israelo-palestiniano na óptica do usurpado e agredido. É atravessar Qalândia, essa fronteira kafkiana que, antes de Israel erguer o muro, era feita de pilhas de sacos de areia e enxames de atiradores e agora corresponde a um imenso labirinto recheado de sensores electrónicas. É temer o desconhecido que se abre à nossa frente, face àquilo que Israel terá erguido sobre as aldeias palestinianas apagadas do mapa. É ver como a relação entre estes dois países é uma pústula que drena continuamente. Há encontros e há equívocos neste caminho que vai dar a um beco. No leitor vai-se instalando a certeza de que, por mais voltas dadas, tudo acabará por ficar na mesma. “Aqui não há heróis, discursos, momentos épicos; há corpos, com todos os seus poros e buracos, há o estar vivo nos detalhes menores, não deixar que o pó cubra tudo”, diz Alexandra Lucas Coelho em “A Volta ao Mundo em Cem Livros”, programa do qual é autora e apresentadora e que a RTP3 exibe semanalmente. Foi justamente ela que me fez descobrir este livro precioso.

Terceiro romance de Adania Shibli, finalista do National Book Award 2020 e do International Booker Prize 2021, “Um Detalhe Menor” mergulha, através de uma escrita simples e desassombrada, no mais fundo da experiência expansionista de ocupação e desapropriação de territórios palestinianos pelos israelitas. Ao mesmo tempo, mostra-nos o que é viver sob constante agressão e ser confrontado com uma persistente dificuldade em reconstituir a própria história face às deslocações forçadas e à contínua privação de poder. Exímia na recriação de ambientes e personagens, a autora distribui a narrativa por dois tempos e duas pessoas distintas, fazendo com que as partes do livro pairem uma sobre a outra, envolvendo-se mutuamente, contaminando-se. Inquietantes, dissonantes, as experiências narradas constituem uma extraordinária reflexão sobre a guerra, a violência, a memória e a injustiça e são, em simultâneo, sujeito e complemento de uma prática reiterada de comportamentos aviltantes e iníquos que muitos insistem em ver como detalhes menores.

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