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sexta-feira, 30 de junho de 2023

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #73



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #73
Com | Beatriz de Sousa, Ágata de Pinho, Pedro Neves Marques
Apresentação | Tiago Alves
Escola de Artes e Ofícios
29 Jun 2023 | qui | 21:30


Numa altura em que a temporada Shortcutz Ovar suspende a sua actividade por conta de umas merecidas férias, seria de esperar que esta última sessão trouxesse com ela o sabor do sol e do mar. Uma sessão leve e descomprometida, feita de risos e beijos, a cruzar aventuras inocentes e amores de Verão. Na noite de ontem na Escola de Artes e Ofícios, porém, mostrou-se o oposto de tudo isto. A ser Verão, os dias foram de duração incerta e carregados de sombras, esmagaram-se os frutos com as mãos ou fecharam-se em sacos de plástico, o mar tornou-se violento e ameaçador e os espaços resumiram-se, com frequência, a um quarto ou a um consultório médico onde a tensão foi latente. Espelho de mundos pessoais, as curtas-metragens a concurso falaram do que se cala e mostraram aquilo que, por norma, se prefere esconder. De forma ousada e corajosa, os três realizadores trouxeram para primeiro plano um conjunto de assuntos que continuam a ser tabu na nossa sociedade, lançando o espectador no desconforto. Todos assumiram o risco de ver os seus filmes escrutinados numa escala de extremos, entre o ódio e o amor. Juiz soberano, o público deu mostras que o amor prevaleceu por larga margem.

Salto “Mesa Posta” e começo por falar de “Azul”, irmão do meio na tríade de curtas exibidas. Seja pelo ritmo, pelos ambientes, pela estética, pelo desempenho de um actor ou por um particular momento, há filmes que nos prendem de uma maneira que não conseguimos explicar e que sentimos como “nosso”. O filme de Ágata de Pinho teve em mim esse efeito. Só em conversa com a realizadora, no final da sessão, descortinei o porquê de o filme se ter feito em mim tão presente, a sua história carregada de tamanha intensidade, de tanta crueza e violência, num processo de afastamento entre uma mãe e uma filha. Primeira obra de uma realizadora que respira cinema, o filme é revelador de uma maturidade incomum, colocando o dedo em muitas feridas, da maternidade compulsória à rejeição filial. À força da narrativa juntam-se efeitos belíssimos – o rasto de um avião, a água que se escoa numa poça, um comboio de mercadorias em marcha atrás – e uma interpretação incrível de Ágata de Pinho no seu próprio papel. Um filme que David Cronenberg gostaria de ter feito.

Pedro Neves Marques trouxe-nos “Tornar-se um Homem na Idade Média”, a sua quarta curta-metragem. Trata-se de uma distopia que se insinua na sensível área da bioética para questionar assuntos como a maternidade masculina, as barrigas de aluguer, a infertilidade, as questões de género ou os problemas da adopção de crianças. Desta história de dois casais que, independentemente do que os aproxima ou afasta, lutam na esperança de virem a ter filhos, sobressai a verdade de que o corpo não é uma máquina infalível. O querer não basta quando não está nas nossas mãos controlar processos biológicos, sobretudo em tempos que se mostram avessos aos conceitos de normalidade. Pseudo-ficcional, o filme retira enorme força da verdade que se pressente nas situações e nos diálogos, aos quais não será alheia a própria vivência do realizador. Ao pôr a correr as histórias paralelas de um casal gay e um casal hétero [Pedro Almodóvar parece andar por aqui], o realizador mais não faz do que alertar-nos para os riscos de tentarmos comparar o que não tem comparação, mesmo que as tensões se assemelhem no intensificar das pequenas violências domésticas.

Termino com “Mesa Posta”, primeira obra de Beatriz de Sousa, uma curta-metragem realizada em contexto escolar e, também ela, espelho de vivências pessoais e familiares marcantes a muitos títulos. Nesta história de violência doméstica, sobressaem a impunidade do agressor e a submissão da vítima. Com uma carga emocional fortíssima, o filme alerta para um problema que atravessa gerações e se perpetua no seio das famílias tradicionais. Beatriz de Sousa sentiu a necessidade de alertar para uma situação que mantém uma alarmante prevalência na nossa sociedade. Fá-lo recorrendo a um conjunto de planos animados, espécie de quadros vivos que se vão preenchendo no sublinhar da história. O texto é narrado em off e revela-se particularmente rico na exploração que faz do linguajar do quotidiano, dos nossos provérbios e expressões idiomáticas. Entre o marido e a mulher (…), o trunfo na manga, o caldo entornado, os pezinhos de lã ou a gota de água, surgem aqui com um sublinhado não isento de humor que vinca, com toda a clareza, a ideia de um mal que importa cortar. Pela raíz!

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