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terça-feira, 27 de junho de 2023

LIVRO: "A Boneca Despida"



LIVRO: “A Boneca Despida”,
de Paulo M. Morais
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Casa das Letras, Maio de 2023


“A entrada custava um escudo e os Silva, se não jantaram no recinto do marialva a ouvir fado, tiveram moedas suficientes para comprar cinco farturas, umas senhas para a tômbola que dava prémio de tacho e panelas e um bilhete de carrossel para Margarida. Noutro dia, quem sabe, talvez houvesse largueza para andarem nos barcos a pedal do laguinho, que ainda embelezara mais o Lugar, novamente asseado e chique como na época do casino e das big bands, a convidar a visita das gentes da cidade, já sem necessidade de olhares desviados dos mendigos que, durante anos, pediam esmola junto à Alameda. No pós-guerra, o país compunha-se. Aprumava-se.”

Quantos pedaços de vida cabem em cem anos? Quantas sonhos, quantas ilusões? Quanto raiva? Quanta dor? Podemos multiplicá-los por mil, que todos eles caberão na longa história de uma vida secular, a de Julieta, grande protagonista deste “A Boneca Despida”. Maltratada por uma avó, discriminada em relação ao irmão, impedida de prosseguir os estudos, submissa a um marido que nunca a soube fazer feliz, em dedicação exclusiva aos filhos que tantos desgostos lhe trouxeram, Julieta é bem o espelho da condição da mulher portuguesa, em particular no período anterior ao 25 de Abril. Num tempo em que campeiam as desigualdades, a discriminação e a violência, ela personifica o elo mais fraco de uma cadeia que se prolonga no tempo, atravessando gerações e constituindo-se em herança disciplinadora e castradora. Ocupar o seu lugar num plano inferior, ser “mãe extremosa, esposa dedicada, uma verdadeira fada do lar”, obedecer sempre e deixar-se violentar sempre, tal é o desígnio desta e de tantas outras mulheres que, contra ventos e marés, tudo suportaram, a tudo resistiram.

A leitura de “Pratas Conquistador - A história desconhecida de um Charlot português”, o anterior romance de Paulo M. Morais, fornece-nos pistas preciosas para adentrarmos este seu novo trabalho, compreendermos a sua dimensão pessoal e a história familiar que se insinua na obra do autor. É lá que vamos encontrar Julieta, a avó Palmira, o tio Emídio e outras personagens comuns a ambos os romances, tal como encontramos o piano da sala de estar ou a escrivaninha chinesa, os álbuns com fotografias de Macau, as cartas provenientes da América. Mas é, sobretudo, o próprio autor que se revela por detrás da sua escrita - como havia feito, de forma tão vívida, em “Uma Parte Errada de Mim” e “Seja Feita a Tua Vontade” -, prolongando a tarefa de esvaziar uma casa, ser juiz da memória e concluir que nada é supérfluo ou irrelevante. São os traços distintivos da escrita de Paulo M. Morais a virem, de novo, ao de cima: a sua honestidade e generosidade, a sua enorme verdade. Por isso, as suas personagens se colam a nós tão solidamente, se fazem aconchego ou desconforto de tão humanas que são.

Expressivo e intenso retrato de vida, “A Boneca Despida” é, igualmente, um extraordinário retrato de época. Julieta é ela mesma e a sua circunstância num país onde, há menos de cinquenta anos, ainda era impensável discutir Deus e a virtude, a Pátria e a sua História, a autoridade e o seu prestígio, a família e a sua moral, a glória do trabalho e o seu dever. Entre 1915 e 2016, Paulo M. Morais faz de cada ano uma espécie de novo capítulo, servindo-se de citações ou referências de época à laia de epígrafe a cada um deles. Para além do interesse dos assuntos abordados, aprecia-se o engenho na relação que o autor estabelece entre a citação e o conteúdo do capítulo. Da proibição de fatos de banho “imorais pela sua transparência ou pela excessiva elasticidade do tecido” aos conselhos para viver cem anos, da “descoberta” de Salazar nos painéis de S. Vicente à receita do Bolo da Felicidade, da nota da partida de um contingente militar para Angola à linha “S.O.S. espiritual”, do pó de arroz ao Veramon “que faz desaparecer as doenças próprias do sexo feminino”, são muitas e saborosas as anotações que nos lembram o que fomos e o que somos.


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