LIVRO: “Estendais”,
de Gisela Casimiro
Ed. Editorial Caminho, Abril de 2023
“ (…) A dez a dez a dez, é para a criança andar bem vestida na rua, na escola, para ir à missa! Cheguem-se para cá! É três por dez! Artigos de loja, artigos de marca! Para homem, para mulher: coisa linda! Leve tudo, leve tudo! É coisa boa, não é Primark, não é lixo. É da Loja das Meias! Pode abrir e ver. Aproveitem, Carolina, Francisca! Venham ver! Vá lá, princesa! Três collants! Olha a mala! Pode levar maiores e mais pequeninas, está bem, querida? Olhem que eu tenho luxo! Ó Teresa, esta menina diz para eu não a provocar. Vocês hoje estão uns chatos do caraças! É de roer! Andem bonitas, mulheres!”
“Roubaram a porta do meu prédio.” A forma como Gisela Casimiro introduz este seu “Estendais” é, em si mesmo, “uma história completa”. “Uma de muitas metáforas da minha vida e das mais bonitas”, confessa, ao mesmo tempo “possibilidade, portal e passagem”. Descrito pela escritora como um livro que vem “do cerne, do coração, do estômago, do amor, da observação de estendais e pessoas”, esta sua primeira incursão na prosa - depois de dois livros de poesia, “Erosão” e “Giz” - reúne mais de setenta crónicas, muitas delas inéditas, outras já publicadas em jornais, revistas e portais impressos e online como “Hoje Macau”, “Buala”, “Contemporânea” e “Gerador”. Nelas encontramos tupperwares e precipícios interiores, memórias descritivas e uma palmada no rabo, trinta dias de silêncio e uma rapariga com tatuagem de Pégaso, as dobras e estrias da Ashley Graham e o Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie. Também um ralhete do Rodrigo Guedes de Carvalho para quem sai à rua em tempos de pandemia ou um barco à deriva e sem motor ao largo de Lesbos.
Gisela Casimiro escreve para nós. Para todos nós, sublinhe-se, mesmo que as prioridades divirjam, as rotinas se estranhem ou as origens se afastem. Escreve sobre os seus lugares, as suas vivências, a sua forma de ver e sentir o espaço em volta, porque sabe que, tal como sucede consigo, haverá sempre alguém que, ali no bairro ou do outro lado do mundo, irá rever-se no que está escrito. Transparente, disponível, recebe do quotidiano pedaços de vida que se desenham a um ritmo difícil de aguentar e que, filtrados pelo seu sentir, nos são devolvidos em forma de crónica. Nessa medida, “Estendais” é um instrumento de afirmação da sua identidade. Sem nada a esconder, a escritora convida-nos a percorrer os seus lugares, a entrar nas casas, a olhar a roupa que se agita ao vento nos estendais, a escutar uma canção de Beth Orton, a falar com um sem abrigo que gosta de ler, a sentir uma ternura que nunca ganha pó. Olhos nos olhos, mão na mão, faz-nos subir e descer na escadaria das emoções e deixa-nos com a certeza que “contar histórias seria inútil se não servisse ninguém”.
No prefácio, a jornalista Lia Pereira diz que Gisela Casimiro “é, como outrora se usou dizer, local e global, íntima e partilhável, é pele e é tamanho”. Isto sente-se e é por isso que nos toca tanto escutarmos, da sua voz, que “a negação caminha de mão dada com a prostração”, que “a fome é uma ameaça que demora muito a deixar-se ver” ou que “parecemos cada vez mais desabituados uns dos outros”. Não há lamento e abandono nas suas palavras, antes uma chamada de atenção e um toque a reunir. Sabemos que o mundo não é um lugar bonito, mas há nele muitas pessoas bonitas e Gisela Casimiro é uma dessas pessoas. Só uma pessoa muito bonita nos diz que “se há dor, que a sintamos, que a expressemos, mas mais tarde ou mais cedo vai haver também felicidade, e devemos tratá-la da mesma forma.” Pessoas reais, situações reais. É disto que se faz “Estendais”, um livro habitado por pessoas e pelas suas histórias, que nos comove pela sua verdade simples, e nos faz acreditar na força que há em cada um de nós com vista à construção de um mundo melhor e mais justo e livre.
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