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domingo, 28 de maio de 2023

CONCERTO: Adriana Calcanhotto



CONCERTO: Adriana Calcanhotto
Concertos Íntimos
Cine-Teatro de Estarreja
27 Mai 2023 | sab | 21:30


Adriana Calcanhotto elegeu o nosso país para dar início à “tour” mundial de apresentação de “Errante”, o seu décimo terceiro álbum de estúdio e o vigésimo da carreira. Depois de Coimbra e Lisboa, ontem foi a vez de Estarreja receber a artista, numa noite que encerrou o ciclo de Concertos Íntimos da temporada. Esta referência aos “Concertos Íntimos” não é inocente, já que de intimidade se vestiu a quase hora e meia que durou o concerto, repartindo-se por dezassete temas (dois dos quais já no “encore”) cantados praticamente em sistema “non-stop”. Através deles deu a cantora a escutar dez dos onze temas que compõem este novo trabalho, havendo ainda espaço para recuar a “Enguiço”, álbum de estreia datado de 1990, do qual cantou “Naquela estação”, uma das suas músicas mais icónicas. Cobrindo um arco temporal de mais de trinta anos de carreira, nesta revisitação não ficaram esquecidos “Beijo Sem”, “Mais Feliz”, “Maresia”, “Fico Assim Sem Você”, o incontornável “Esquadros” (com um arranjo inicial a beber a inspiração em Richard Strauss e no conhecido tema de abertura do filme “2001:Odisseia no Espaço”) e esse beijo a Coimbra que é “Corre o Munda”, do álbum “Só” (2020).

Acompanhada pelos músicos Jorge Continentino (flauta, saxofone, teclados), Diogo Gomes (trompete), Marlon Sette (trombone), Guto Wirtti (contrabaixo), Domenico Lancellotti (bateria) e Pedro Sá (guitarra), Adriana Calcanhotto abriu o concerto com “Prova dos Nove”, justamente o tema que inaugura o seu novo trabalho. Nele a cantora parece querer justificar esta sua “errância” - “Tenho o corpo italiano / O nascimento no Brasil / A alma lusitana / A mátria africana (…) / E a crença na alegria como prova dos nove” - , mas rapidamente se percebe que a errância será sobretudo íntima, interior, e a “alegria como prova dos nove” surgirá vertida na tristeza de quem se vê preterida por “não ser branca, não ser moça, por ser mulher” (“Quem Te Disse”), de quem perde um amor (“Era Isso o Amor?”), de quem não se vê correspondida (“Horário de Verão), de quem não aceita a despedida para sempre (“Reticências”). A errância, portanto, o ser “Nômade”, sem pouso, ser aquilo que se carrega amanhã cedo, ser aquilo que se carrega amanhecendo.

Dolorida, magoada, carregando no seu seio uma enorme tristeza (da doença? da perda? do luto?), foi esta a Adriana Calcanhotto que vi no palco do Cine-Teatro de Estarreja. A sua alegria contagiante, a sua energia e entusiasmo inspiradores, primaram pela ausência na noite de ontem. Às palmas que celebravam cada uma das músicas, respondeu com um sorriso tímido e um discreto “obrigada” que os acordes da música seguinte se encarregaram de abafar rapidamente. Nunca “provocou” o público e apenas na última música virou o microfone para a audiência, escutando, no retorno, “por que é que tem que ser assim / se o meu desejo não tem fim.” Foi uma Adriana Calcanhotto fragilizada, desprotegida, vulnerável, aquela que vi em palco. Uma Adriana com uma voz menos ágil, que dispensa o atrevimento do gesto, que caminha lentamente como quem percorre um trilho pejado de espinhos. Que mostra consciência das suas limitações (e isto é a minha sensibilidade a dizê-lo) e não desiste de as desafiar e de as assumir. Mas foi assim, despida de fantasias, inteira e limpa, que escolheu dar-se a ver. Tocante de humanidade, transformou o gesto e a palavra em instantes sublimes e únicos. E fez do concerto um dos mais belos momentos de sempre.

1 comentário:

  1. Senti o que tão bem apresenta, uma Mulher marcada pela vida, "fragilizada", embora plenamente consciente da força e da persistência do seu sinuoso percurso.
    Um espetáculo de sublime beleza, desde a riqueza do maravilhoso vestido, à qualidade dos músicos e aos encantadores pormenores, sabiamente semeados.

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