Páginas

terça-feira, 30 de maio de 2023

LIVRO: "O Quarto de Giovanni"



LIVRO: “O Quarto de Giovanni”,
de James Baldwin
Título original | “Giovanni’s Room” (1956)
Tradução | Valério Romão
Ed. Alfaguara, Maio de 2020


“As pessoas são demasiado diversas para serem tratadas com tanta ligeireza. Eu sou demasiado diverso para ser confiável. Se assim não fosse, não estaria esta noite sozinho nesta casa. A Hella não estaria no mar alto. E o Giovanni não estaria condenado a morrer, algures entre esta noite e a manhã que se aproxima, guilhotinado.”

Socorro-me do adjectivo “esmagador” quando penso na dificuldade em escrever um apontamento, por breve que seja, sobre um livro de James Baldwin. Hesitei perante a força e intensidade de “Se o Disseres na Montanha”, um dos melhores livros que li na minha vida, e essa hesitação mantém-se até aos dias de hoje. Rompo com a hesitação neste “O Quarto de Giovanni”, extraordinário retrato da relação homossexual que se estabelece entre David, jovem diletante americano que busca em Paris um rumo para a sua vida, e Giovanni, um empregado de bar italiano. O tempo é o do pós-segunda guerra mundial, mas não é ainda um tempo de amplas liberdades. Numa sociedade dominada pelo cinismo, o preconceito e a homofobia resultam em comportamentos persecutórios que concorrem para o isolamento daqueles que revelam uma orientação sexual divergente da “normalidade”. Afirma-se o medo e a culpa, questiona-se o que é possível assumir, mede-se o que cada um esconde de si próprio. No corpo e na alma crescem as feridas.

Uma casa luxuosa na periferia de uma estância de férias de Verão, no Sul de França. Lá fora escurece pouco a pouco. À janela, “na mão um copo, uma garrafa junto ao cotovelo”, está David. Antes do regresso a Paris, que acontecerá na manhã seguinte, o tempo é de balanço. Um olhar retrospectivo leva-o até à infância, à perda da mãe, ao mau relacionamento com o pai, à sua iniciação sexual com um rapaz como ele. O momento é doloroso, fá-lo reequacionar a sua sexualidade, convencer-se do quão errado é sentir-se atraído por alguém do mesmo sexo. A insegurança e ambivalência do seu comportamento irão prolongar-se e ampliar as contradições que o perturbam e confundem. Disposto a contrariar a sua própria natureza, conheceu Hella a quem pediu em casamento. Também ela americana, precisa de tempo para reflectir: faz um périplo por Espanha e acaba a dizer-lhe que sim, tão logo regressa. Entretanto, David conheceu Giovanni e as dúvidas avolumaram-se. Tudo naquele quarto o repugnava, mas nele permaneceu três semanas, entre a atracção e a rejeição. Como diz o poeta, “pode alguém ser quem não é?”

O desfecho desta história é dado por Baldwin logo no início, mas os pormenores vão sendo oferecidos a conta-gotas, num exercício de gestão de expectativas do leitor absolutamente genial. À medida que mergulhamos no romance, vamos decifrando as interrogações de David e compreendendo a dificuldade em aceitar os seus sentimentos. Simultaneamente, damo-nos conta da solidão e do enorme vazio existencial em que a personagem – e mais tarde Giovanni – se encontra. A narrativa na primeira pessoa adensa o tom confessional do livro. A alternância entre passado e presente cria momentos de grande tensão, explorando o ardor dos sentimentos e a violência daquilo a que se convencionou chamar “destino”. O que James Baldwin oferece de bandeja ao leitor não é “o obscuro objecto do desejo”, antes o próprio desejo: urgente, irrefreável, sem limites. Fá-lo numa linguagem com tanto de elegância como de pudor, quase num sussurro. Um sussurro que é um grito, que fere na sua urgência, que obriga o leitor a pensar o outro, a respeitá-lo, a abraçá-lo.


Sem comentários:

Enviar um comentário