EXPOSIÇÃO DE PINTURA: “Utopia e Realidade”,
de Gina Marrinhas
Galeria Morgados da Pedricosa, Aveiro
27 Mai > 20 Jun 2023
“O ser humano que nos gabamos de ser soube sempre humilhar e ofender aqueles a quem, com triste ironia, continua a chamar seus semelhantes. Inventamos o que não existe na natureza, a crueldade, a tortura, o desprezo. Por um uso perverso da razão viemos dividindo a humanidade em categorias irredutíveis entre si, os ricos e os pobres, os senhores e os escravos, os poderosos e os débeis, os sábios e os ignorantes, e em cada uma dessas divisões fizemos novas divisões, de modo a podermos variar e multiplicar à vontade, incessantemente, os motivos para o desprezo, para a humilhação e a ofensa.”
[Extraído de José Saramago: “Chiapas, nome de dor e de esperança”, Visão, 9 de Junho de 1998]
Depois de “Histórias de Encantar”, que tive oportunidade de ver muito recentemente na Biblioteca Municipal de Ovar, e de “Lusíadas, a Alma da (Nossa) Gente”, em finais de 2019 e no mesmo local, volto a cruzar o olhar com a pintura de Gina Marrinhas. No bonito e bem cuidado espaço da Galeria Morgados da Pedricosa, em Aveiro, é possível apreciar “Utopia e Realidade”, exposição patente ao público desde o passado sábado e que reúne um conjunto de vinte e oito trabalhos representativos do multifacetado universo da artista. Pintora de causas, atenta aos problemas que afligem as sociedades actuais, empenhada na busca de soluções, Gina Marrinhas elege a sua pintura como arma de denúncia, espalhando através dela uma mensagem universalista, transformadora, interventiva e profundamente humanista, que luta pela valorização da pessoa e da sua condição e sonha com um mundo mais justo e melhor.
Os desafios a que vamos sendo sujeitos, desde uma pandemia e uma guerra na Europa à crise inflacionista, às desconfianças que recaem sobre os sectores da economia e da política ou à escalada dos movimentos populistas e nacionalistas, não escapam ao olhar e à sensibilidade da pintora. Por isso pede que estejamos atentos às atitudes e comportamentos preconceituosos e discriminatórios que pendem sobre os mais frágeis e vulneráveis e que abandonemos o tom de passividade face ao sofrimento das crianças e idosos, das mulheres vítimas de violência doméstica, dos que sofrem perseguição política ou fogem das guerras, dos que revelam uma orientação sexual diversa ou não nasceram com a mesma cor da pele. Marginalizados, excluídos, vamos encontrá-los em quadros cuja enorme beleza pictórica não oculta o significado de um olhar perdido na imensidão, de um ombro que se enlaça, de um grito calado, de um rosto dolorido, de umas mãos que se erguem aos céus. Quadros que devemos olhar de frente, como quem se vê ao espelho.
Num todo coerente, “Utopia e Realidade” leva-me a abraçar Gina Marrinhas com a maior admiração. A sua pintura sempre me cativou, as figuras evanescentes, aquela paleta reduzida em combinações a primar pela elegância e bom gosto, quase como quem pede desculpa por “abusar” da cor, por vezes um fulgor vermelho vivo como um risco que se aceita correr. Porém, mostra-se aqui de uma forma que eu não conhecia, que me surpreendeu e me fascinou. Nesta exposição, a crueldade que se abriga por detrás de um conto infantil tem uma expressão bem real. Este país (este mundo) não é o de Alice, na floresta o lobo-mau não admite perguntas e pinóquios é o que mais há. Armas, só de destruição maciça, os barões assinalados são carne para canhão e as “ilhas dos amores” tomam o nome de Samos, Lesbos ou Lampedusa. Quase nada disto, porém, é mostrado cruamente. A inquietação gerada advém do contraste entre a chamada de atenção subtil e o conjunto de emoções que daí advêm. Um grito será sempre um grito, mesmo que levantado num sussurro.
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