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terça-feira, 25 de abril de 2023

EXPOSIÇÃO DE PINTURA E DESENHO: "Purga" | Agostinho Santos


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EXPOSIÇÃO DE DESENHO E PINTURA: “Purga”,
de Agostinho Santos
Curadoria | Valter Hugo Mãe
Museu dos Clérigos
26 Mar > 30 Abr 2023


Agostinho Santos volta a surpreender-me com a sua visão de um mundo imaginário, com tanto de íntimo como de revelador. Desta vez, porém, os trabalhos parecem ter outro alcance e dimensão e isto porque o espaço onde decorre a exposição como que amplifica a sua mensagem, tornando-a mais intensa, mais real. Espaço de culto e de oração, o complexo edificado dos Clérigos abre as portas do seu Museu a um conjunto de obras onde deus e o diabo se passeiam de braço dado. Mas não será assim desde o medievo, com as ilustrações do Paraíso e do Inferno sobre os muros das igrejas a desempenharem uma importante função de reforço das doutrinas salvíficas e condenatórias da fé cristã apresentadas e trabalhadas oralmente nas igrejas pelos clérigos? Valorizando a espiritualidade inerente às peças expostas e ao local onde me encontro, abraço as pinturas e desenhos, os livros de artista, “ex-votos” e sacrários portáteis, à medida que adentro o espaço do artista, o seu (e nosso) purgatório.

Se exceptuar uma ou outra obra em exposições colectivas, dentro ou fora do seu “Museu de Causas”, posso afirmar que vi Agostinho Santos pela primeira vez em finais de 2020. Ainda tenho presente os múltiplos avisos para higienizar as mãos e manter o distanciamento social de 2 metros. Pela primeira vez, uma maquineta “pediu-me” que parasse e dirigisse o olhar para um ponto preciso para me “ver” a temperatura. Estávamos a atravessar a nossa pior fase da pandemia e o título da exposição, “Século Monstro”, aludia (também) a isso. Lá dentro, o “novo normal” fazia-se anunciar nos olhares parados que nos interrogavam a partir da tela, nos corpos disformes que para nós estendiam os seus muitos braços e pernas, nos focinhos conformados uns nos outros abrindo muito as bocas e deixando ver as fiadas de dentes, nas serpentes esgueirando-se por entre os crânios ermos, na tinta vertida como sangue a escorrer das telas e a dizer-nos que o mal (o vírus) habita ali. É intrínseco ao homem este mal que importa expurgar. Sem ele, a noção ou essência do bem não teria razão de ser, aqui residindo o maior argumento para negar a existência do céu tal como nos é “pintado”.

Figurativamente, é o mal e o bem que Agostinho Santos evidencia, tal como o fizeram ou fazem ceramistas como Julia Ramalho ou Julia Côta, ou muitos dos nomes de culto da designada “arte bruta”, essa arte “das personalidades extraordinárias, animadas por uma febre criadora”. Com olhar febril seguimos o traço do artista. Há nele qualquer coisa de Escher, uma forte intencionalidade na forma como as figuras resultam umas das outras, o que remete para noções como a relatividade, a numerologia, as metamorfoses, o infinito. Cada desenho é uma constelação de seres cujo princípio e fim têm a uni-los um fio de Ariadne. Atentos à obra de Agostinho Santos, é com a nossa própria dimensão humana que nos confrontamos. As questões sobre quem somos, de um onde viemos e para onde vamos talvez encontrem aqui respostas que nos confortem e apaziguem. Para ver só até ao próximo domingo.

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