LIVRO: “O Dever de Deslumbrar – Biografia de Natália Correia”,
de Filipa Martins
Edição | Rui Couceiro
Ed. Contraponto Editores, Março de 2023
“O arrebite irónico que Martins Gomes lhe imprimiu nos lábios serve de faísca à provocação: quem a via passar, julgava que as árvores ganhavam vida por se verem testemunhas da sua beleza de juventude; porém, foram as ideias e a poética de Natália que deram voz à floresta. Vaticinou, em A Vinha e a Lira, que “os sonhos vão erguer-se sobre as patas traseiras e as árvores vão gritar o seu direito ao voto”. Estávamos em 1966. A obra foi, naturalmente, censurada e recolhida pela PIDE, mas as ideias germinaram, não se ficando pelo cair da folha.”
Peguei no livro, tomei-lhe o peso, apreciei-lhe a capa e, antes de virar a primeira página, perguntei-me: Que sei eu de Natália Correia? Muito pouco, constatei à medida que a leitura avançava, a começar pela sua figura, feita daquele “tipo de beleza que atrai desgraças”. Conhecia-a enquanto escritora, dramaturga, poeta e ensaísta, mas não fazia ideia que a maior parte da sua obra, no período anterior ao 25 de Abril, sofrera tão duramente o peso da censura. Adivinhava-lhe as convicções políticas inabaláveis, mas estava longe de a ver empenhada em lutas duríssimas das quais não tinha como sair vencedora. Lembrava-me da sua língua afiada na tribuna da Assembleia da República, mas não a sabia “imatura no desamparo perante as coisas práticas da vida”. Por cima da voz de José Mário Branco, cantava a sua “Queixa das Almas Jovens Censuradas”, mas ignorava que ela própria, Natália, dera corpo a muitas outras “queixas” de muitas outras “almas”.
Estas e outras surpresas – muitas outras, devo dizer -, transformam a leitura de “O Dever de Deslumbrar” numa fascinante viagem ao encontro daquilo que Natália Correia soube (e quis) ser ao longo de quase sete décadas de vida. Uma vida intensamente vivida, que a levou a amar e a ser amada, na exacta medida em que foi odiada e odiou. Atenta, metódica, exímia na forma como soube tirar partido da sua enorme inteligência e perspicácia, “abominou a mediocridade, venerou a beleza, pugnou pela diferença e sacralizou a liberdade.” Em momentos da mais feroz repressão “deu o corpo às balas”, defendendo sempre que a intervenção política era uma “obrigação dos poetas”. Questionou, lutou, obstinou-se, porfiou, insultou, amuou. Insistiu, resistiu. Foi uma mulher de causas e fez da Cultura, da Mulher e dos Direitos Humanos, lutas maiores. Ganhou amigos para a vida, incompatibilizou-se irremediavelmente com outros, mas nunca se deixou surpreender por nada nem por ninguém. Ficamos com a recordação de uma mulher contundente, visceral, provocadora, mas de uma humanidade sem limites. E ficamos, também, com uma obra à sua imagem: Forte, generosa, talentosa e imensamente livre.
É neste inesgotável manancial de águas, entre o turvo e o cristalino, que Filipa Martins vai beber um conjunto de acontecimentos absolutamente extraordinários, cruzando-os com os lugares e os tempos do século XX português. É notável a forma como a biografia está construída, oferecendo múltiplas pistas para a compreensão da pessoa biografada. Apaixonada e apaixonante, a narrativa reflecte o apego da autora à sua biografada, a sua profunda admiração. São muitas as pontas deixadas propositadamente à solta, elementos criadores de tensão que tornam a leitura empolgante. Dou como exemplo o período entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro, narrado com um ritmo e uma intensidade alucinantes, a ponto de deixar o leitor sem fôlego. A elegância do fraseado, a ponta de ironia, o humor requintado, o aparte certeiro, a cadência certa no sequenciar da narrativa, colam Filipa Martins a Natália Correia no que tem de inteligência, combatividade e energia. Uma contaminação que gosto de ver no próprio título de um livro que me deixou deslumbrado. Uma e outra cumpriram bem o seu dever.
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