TEATRO: “Em Camisa”,
Inspirado no romance “Lisboa em Camisa”, de Gervásio Lobato
Dramaturgia, encenação, figurinos, cenários, som e luz | Leandro Ribeiro
Desenho | Marta Baldaia
Interpretação | Ana Catarina, Ana Rodrigues, Clara Oliveira, Cláudia Dias, Diana Coutinho, Fábio Vaz, Flávia Krishina, Hernâni Sá, Joana Sousa, Leandro Ribeiro, Luís Rola, Marco Nunes, Mónica Pinto, Otília Pereira, Palmira Baptista, Patrícia Quintino, Sara Moreira
Produção | Sol d’Alma – Associação de Teatro
135 Minutos | Maiores de 6
Auditório Sol d’Alma
23 Abr 2023 | dom | 18:30
“O Sr. Antunes, desposando a filha do administrador do concelho, desposou também o seu ponto de vista político. Ora, com esta opinião, vai-se longe em Portugal, muito mais longe que do Algarve a Lisboa. O Sr. Antunes veio até Lisboa. Seu sogro fez por lá sandice grossa, e para não se verem obrigados a demiti-lo, fizeram-no chefe de uma repartição. A filha não quis mais tempo viver naquele inculto concelho, onde a eloquência de seu pai não tinha florido. Antunes viu-se embaraçado, tinha de um lado a política de seu sogro, do outro os figos de seu pai. Decidiu-se pela política de seu sogro, que o fazia segundo-oficial das Obras Públicas, Comércio e Indústria, e abandonou os figos da sua infância.”
Um quase desconhecido do nosso espectro literário, Gervásio Lobato foi um autor muito apreciado no seu tempo pela forma como transformava os seus escritos em estudos humorísticos da vida lisboeta. Publicada originalmente em 1882, a novela “Lisboa em Camisa” representa um dos pontos mais altos da sua obra ao explorar o lado risível da vida humana, detalhando o quotidiano de uma franja da pequena burguesia da capital. Foi justamente neste livro que Leandro Ribeiro se inspirou para criar “Em Camisa”, peça de teatro em um acto (e a ameaça de um segundo) que a Sol d’Alma – Associação de Teatro estreou no passado dia 02 de Abril. O ambiente é de expectativa quando os actores se reúnem com o mestre para a escolha da peça e distribuição de papéis. É este o ponto de partida de um espectáculo que, ao longo de um pouco mais de duas horas, nos conduz pelos meandros da criação artística, expondo ao olhar do público as relações, nalguns casos tóxicas, que os actores estabelecem entre si e com o mestre. O carácter de “peça dentro da peça” permitirá conhecer a história de Justino Antunes e penetrar no seu ambiente familiar e social, ao mesmo tempo que é traçado um retrato burlesco, mas também amargo, dos bastidores do teatro.
Há aspectos que importa realçar nesta peça e que fazem com que ela não se resuma a um mero exercício de representação. A “ambição” de centrar a acção em Ovar, “uma grande capital europeia”, é um deles e mostra que Ovar ou Lisboa é apenas uma questão de geografia. Esta opção permite aproximar o texto do público, explorando referências que, entre o ingénuo e o mordaz, colocam nos rostos o mais amplo dos sorrisos. Fazer da Rua dos Fanqueiros a Rua de Timor ou do Museu do Carmo a Casa-Museu Júlio Dinis (encerrada aos domingos), são apontamentos que “casam” na perfeição com as figuras de Santa Camarão ou do Visconde de Ovar, a requalificação do Cais da Tijosa ou os atractivos da Noite Mágica. As rábulas sucedem-se. Há corpos insinuantes, desmaios alarmantes, discursos desesperantes, perucas berrantes, barrigas extravagantes, jantares volantes. Canta-se em alemão uma ária da “Traviata”, reclama-se o pagamento do estrago numa jarra, aguarda-se com impaciência a chegada do “senhor VIP”. Um momento de pausa transforma-se no primado da imbecilidade. A tensão estala por um “s” a mais num nome. Mesmo que “a cara não bata com a careta”, há homens no papel de mulheres, mulheres no papel de homens e até há quem tenha o papel de não ter papel nenhum.
As muitas leituras que “Em Camisa” oferece, confluem na direcção do teatro amador e do que representa no espectro cultural de uma sociedade que, cada vez mais, confunde cultura com entretenimento. É deste teimar que surgem projectos firmados, se consolidam públicos e se ousam propostas como “Em Camisa”, uma peça que é tudo menos fácil. Mas teimar a que preço? Ao escutarmos a “Presidenta” a deitar contas à vida, a lamentar a escassez de coberturas do seguro, a apontar o dedo às Finanças ou a pactuar com a aceitação das meninas do “papátrocinador”, apetece dizer que “Deus sabe de todos e a Sol d’Alma sabe de si”. Falta falar do elenco e de como souberam interpretar os seus papéis na perfeição. Nas pausas hesitantes, nos olhares medrosos, nas inflexões tímidas das vozes, adivinha-se a complexidade de ser actor por cima do actor. Assente nessa condição dúplice, uma nota de humanidade atravessa toda a peça e convida o espectador a olhar para o seu próprio papel no teatro da vida. No final, clama-se pelas vanguardas à falta de luz, partem-se as ventas ao senhor VIP e a poesia é mera música de fundo. Na mente, uma frase ergue-se, enfática, vibrante: “Não existem pequenos papéis, o que existem são grandes actores”.
[Foto: Manuel Vitoriano | https://www.facebook.com/soldalma]
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