CONCERTO: “Vignette”
Daniel Bernardes (piano e composição), Filipe Quaresma (violoncelo), João Barradas (acordeão)
Auditório de Espinho
15 Jan 2023 | dom | 18:00
“Um piano, um violoncelo, um acordeão. Três talentosos instrumentistas, expoentes de energia e virtuosismo, unidos por uma forte cumplicidade e paixão pela música. Oito temas radiantes, harmoniosos e delicados como uma flor. Enfim, uma diversidade de sequências filmadas, insinuantes, sedutoras, ponto de partida e de chegada destas “vinhetas”, conjunto inspirado de ornamentos musicais, lente que amplia e valoriza um olhar pessoal sobre o cinema português e o estende para além do palco, o leva ao encontro de quem pode (e sabe) apreciá-lo. Isto é “Vignette”, o mais recente projecto de Daniel Bernardes, viagem de sons e de sonhos pelo cinema de Pedro Costa, Paulo Rocha, Teresa Villaverde, Manoel de Oliveira, António de Macedo, Sérgio Tréfaut e João Botelho, “tentativa de cristalizar em música” o encantamento que resulta de uma fala, de um gesto, de um olhar.
Não poderia ser mais auspicioso o arranque da nova temporada no Auditório de Espinho. Envolvente e intimista, a proposta de Daniel Bernardes, Filipe Quaresma e João Barradas agarrou o público desde os primeiros acordes, transformando-se numa hora feliz, ao longo da qual a música fluiu inquieta, hipnotizante e imensamente bela. Inspirado em “Ossos”, filme que Pedro Costa trouxe ao mundo há 25 anos, o tema de abertura do concerto bebeu a inspiração nos ambientes lúgubres e miseráveis de um bairro negro dos subúrbios de Lisboa, oferecendo-nos uma música atravessada por uma tristeza magoada, por uma desesperança infinda, ferida que dói e sente-se. “Mudar de Vida”, um filme de Paulo Rocha, deu azo a “Memória do Poço Seco”, pedaço de azul intenso de céu e mar, gritos de gaivotas, cheiro a maresia, os risos das crianças, os silêncios dos velhos, enfim esse poço seco que, descarnado, rude, se ergue em altivez nas areias da praia do Furadouro, num desafio de marés vivas.
Jovial, desarmante, provocadora, recheada de paisagens de uma enorme densidade e riqueza, “Os Mutantes”, título extraído do filme homónimo de Teresa Villaverde, é uma peça em três andamentos que vale, por si só, o tempo do concerto. A inconstância, a irreverência, a fuga à norma que animam a Andreia, o Pedro e o Ricardo, os grandes protagonistas do filme, encontram eco na composição de Daniel Bernardes, a acção sublinhada por “falas” que os instrumentos assumem no limiar do risco, devolvendo-nos uma música que se contorce e desdobra sobre si mesma, graciosa e ágil, fã do improviso, irresistível na forma como se reinventa e nos puxa para o lado livre das coisas. “Angélica”, composto a partir de imagens do filme “O Estranho Caso de Angélica”, de Manoel de Oliveira, veste-se de romantismo para nos falar de amor e morte em mais um momento de profundo intimismo. Peça para piano, “Interlúdio em Ré” foge à norma na medida em que não é inspirado por nenhum filme em particular, antes se abre à possibilidade de ilustrar um filme ainda por fazer. Será um filme de tons claros, levemente nostálgico mas essencialmente alegre, um filme-poema daqueles que sabem bem e nos fazem tão bem.
Para o final ficam três peças, distintas entre si mas unidas por igual toque de sensibilidade e bom gosto. Primeira longa-metragem de ficção de António de Macedo, um dos percursores do Novo Cinema português, “Domingo à Tarde” serve de inspiração ao tema homónimo, a angústia e a morte que o habitam a nortearem a música. “Minha Ma”, o penúltimo tema, revela-se de grande complexidade e desafia o ouvinte a que descubra os seus fundamentos e alcance. A música sugere os grandes espaços, um tempo caprichoso, a violência do homem. A preponderância do acordeão leva-nos às grandes estepes da Ásia Central, ao encontro do cinema de Mikhalkov e Paradjanov. É, afinal, Sérgio Tréfaut e o seu “Raiva” que aqui estão em causa, o espaço imenso o do nosso Alentejo, a violência a da eterna luta entre os senhores e aqueles que nada têm. Finalmente, “Um Prelúdio em Forma de Assim”, o cinema de João Botelho de mãos dadas com a escrita de Alexandre O’Neill, numa peça que integra a banda sonora de “Um Filme em Forma de Assim”. Não uma possibilidade, pois, antes um facto, uma realidade, vestida de emoção e imprevisto. Um concerto superlativo e que irá marcar, de forma indelével, o ano que agora começa.
[Foto: Auditório de Espinho | https://www.facebook.com/auditoriodeespinhoacademia]
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