TEATRO: “Casa Portuguesa”
Texto e encenação | Pedro Penim
Cenografia | Joana Sousa
Figurinos | Béhen
Interpretação | Carla Maciel, João Lagarto, Sandro Feliciano, Lila Tiago, João Caçador
Produção | Teatro Nacional D. Maria II
110 Minutos | Maiores de 14
Teatro Nacional S. João
14 Jan 2023 | sab | 19:00
“ (…) Fica bem esta franqueza, fica bem / Que o povo nunca desmente / A alegria da pobreza / Está nesta grande riqueza / De dar, e ficar contente.” Alegria da pobreza? Quantos de nós se detiveram já na letra de “Uma Casa Portuguesa”, uma das canções mais conhecidas da nossa música, imortalizada na voz de Amália Rodrigues? Haverá algo mais ao gosto da ideologia do Estado Novo? Numa altura em que nos preparamos para celebrar os cinquenta anos do 25 de Abril, é dramático, uma quase heresia, saber de cor esta letra e continuar a cantá-la tão alegre e descontraidamente. Esta e outras questões vamos encontrá-las no miolo de “Casa Portuguesa”, texto e encenação de Pedro Penim, em cena por estes dias no Teatro Nacional S. João, no Porto. É lá que somos confrontados com um conjunto de assuntos que fazem parte do nosso quotidiano e que importa escrutinar. Assuntos que entroncam, desde logo, nos modelos de masculinidade, estendendo-se às questões de género, às desigualdades sociais, culturais e políticas, ao preconceito racial. Assuntos que se discutem à volta da casa, na casa, em casa. No seio da família, célula de formação de identidades e valores por excelência. Para o bem e para o mal.
Peça ficcional inspirada em situações reais, extraídas do diário do pai de Pedro Penim aquando da sua passagem pela guerra em Moçambique [“No Planalto dos Macondes”, de Joaquim Manuel Penim, edição de autor, Lisboa 2004] e de testemunhos de ex-combatentes, “Casa Portuguesa” tem a particularidade de assentar num texto genial, apostado em abalar consciências e em não deixar ninguém incólume. O valor da sua escrita advém da urgência em perceber o porquê de uma sociedade tão acomodada e indiferente, de chamar a atenção para as contradições em que quotidianamente lavramos, de questionar a falta daquilo a que Miguel Torga chamou “o romantismo cívico da agressão”, face ao nosso desígnio de “comunidade pacífica de revoltados”. Através da história deste ex-soldado, em diálogo com os seus fantasmas, o espectador é confrontado com “a decadência e a transformação do ideal de casa, de família, de país e do cânone da figura paterna.” É então que o texto opera milagres, uma arrebatadora e pungente “carta ao pai” como um despertar de consciências, o tirar o tapete àqueles que, sobranceira e arrogantemente, se firmam nos seus “princípios” e se recusam a questionar a sua conduta enquanto pais ou educadores.
Um texto assim pede actores à altura e, também neste capítulo, a nota é muito elevada. No papel do pai, João Lagarto tem aqui uma interpretação notável. Na sua inadaptação à mudança, na forma como se escuda atrás da idade para dizer que já não quer nada, já não espera nada, o actor agiganta-se, enorme de realismo, de uma verdade comovedora. Carla Maciel e Sandro Feliciano são igualmente exímios na forma como encarnam os seus papéis, Carla Maciel a sustentar de forma magnífica o diálogo com João Lagarto em torno da masculinidade - “os homens são lixo” - e Sandro Feliciano a ter um desempenho brilhante ao dirigir-se ao pai nessa carta de sentido único, verdadeiramente arrasadora, arrebatadoramente verdadeira. Há, enfim, Lila Tiago e João Caçador, convincentes em papéis de grande exigência, uma cartada genial de Pedro Penim ao lançá-los num registo menos conhecido do grande público e, para quem os associa exclusivamente à música dos Fado Bicha, uma surpresa da boa. Pedro Penim faz aqui a sua estreia à frente do Teatro Nacional D. Maria II. Cabe-lhe a tarefa de levar por diante um conjunto de propostas de enorme interesse e, não menos importante, manter e, se possível, elevar o legado de Tiago Rodrigues, o anterior director. Eu diria que não poderia ter começado melhor.
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