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domingo, 15 de janeiro de 2023

LIVRO: "A Última Lua de Homem Grande"



LIVRO: “A Última Lua de Homem Grande”,
de Mário Lúcio Sousa
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Maio de 2022


“A psicose da perfeição atrapalha-o sempre. Está com duas mudas de roupa nos braços e ainda não decidiu com qual vai. É de sua natureza. E isto lembra-lhe a caixa de lápis de cor. Eram doze lápis para dois irmãos e acertaram que do preto até o lilás constituía o mar da gama de Ivo, e da violeta até o branco a terra de Amílcar e, para evitar que os desenhos de um fosse sempre do mesmo tom, podiam intercambiar lápis, mediante empréstimo expresso e consentimento inequívoco, não por tacanhez, mas por acérrima disciplina implementada pela mãe, lápis para quatro anos, como mandava a tradição. Com o tempo, a caixa parecia de um lado a casa de David e do outro a de Golias, arquitectura ditada pela obsessão de Amílcar em ter os lápis sempre aparados, o aparador era cego, o menino perfeccionista e não dava o aparo por concluído enquanto a mina estivesse irregular como dente de criança, e partia o miolo uma, duas, três, sete vezes, até conseguir o cone invertido indefectível: os lápis de Amílcar ficaram liliputianos, os de Ivo ainda exibiam metade da marca Faria, Cacheux & C.ª.”

Quem foi Amílcar Cabral? Faço a pergunta numa roda de amigos e a resposta vem com um encolher de ombros envergonhado, as palavras “guerra do ultramar”, “movimentos independentistas” ou “dirigente político” a aflorarem timidamente. Talvez a nova geração saiba mais sobre Amílcar Cabral do que as duas ou três anteriores, assim o espero. Muitos de nós, os que nascemos antes do 25 de Abril, vimos sempre ser-nos vedado o acesso aos dois lados de uma história absurda, infinitamente triste, um erro, um crime. É, pois, com grande surpresa minha, que, no abraço deste “romance historiado”, desta “história romanceada”, me é dada a conhecer a pessoa de Amílcar Cabral, do momento em que nasceu até à sua morte, aos 48 anos, na Guiné-Conacri, assassinado por aqueles que lhe eram mais próximos. “A Última Lua de Homem Grande” fala-nos do menino e sua mãe, do jovem e suas paixões, do homem e sua luta. Dos seus estudos de Agronomia em Lisboa e do que era ser negro no meio académico de então, do seu envolvimento nas acções oposicionistas ao regime e no movimento da negritude de Léopold Senghor, da sua participação na fundação do PAIGC e na luta armada pela auto-determinação e independência dos dois países, das lutas internas no Partido, da eterna rivalidade entre guineense e cabo-verdianos, da contestação à liderança de “Homi Garande”, enfim, do acto traiçoeiro que redundou no seu assassinato.

A morte do dirigente num dia 20, número “inacreditável, cabalístico”, serve de ponto de partida a um monólogo contado, de forma original, na terceira pessoa. A opção de Mário Lúcio Sousa por esta linha narrativa revela-se de uma enorme coerência, visto Amílcar Cabral, no seu dia a dia, referir-se geralmente a “ele” quando falava de si, colocando os seus pontos de vista exteriormente à sua pessoa, como se em constante escrutínio de si mesmo. De resto, a coerência e consistência desta abordagem à vida e obra de Amílcar Cabral mostram-se fortemente consolidadas na verdade dos factos, datas, nomes, lembranças, acontecimentos e seus conteúdos, na forma como ocorreram e se encontram bem documentados. Ao autor coube a tarefa de organizar o material recolhido, estabelecer uma ordem literária, harmonizá-lo sob a forma de romance. “A Última Lua de Homem Grande” resulta num livro belíssimo, com um cunho biográfico fortemente impresso nas suas páginas, mas com o perfume da ficção a suavizar a leitura, a facilitar a aproximação do leitor à História, sem que daí resulte qualquer diminuição da sua força e interesse.

A par da importância e significado de uma obra que nos abre a vida e o mundo daquele que, segundo o BBC History Magazine, emergiu do tempo como o segundo maior líder da História, há no livro uma dinâmica narrativa que merece ser igualmente valorizada. A história de Amílcar Cabral é contada num arco de tempo muito curto, tornado longo pelas sucessivas regressões que acompanham os passos de uma vida, na esfera pública como na privada. Este artifício permite acompanhar pausadamente uma existência que corre como se de uma vertigem se tratasse, o “filme” de uma vida passado em revista agora que o fim se aproxima de forma inexorável. Mário Lúcio Sousa revela-se igualmente exímio na construção de um verdadeiro puzzle, enriquecendo-o com o uso parcimonioso do crioulo e a exploração das possibilidades que a língua portuguesa oferece, mediante uma apropriação espirituosa e imaginativa de palavras e expressões de uso corrente, transformadas em novos ditos de forte conotação política, de “a bando dados” (“abandonados”) a “os disses e os dentes” (“dissidentes”). Finalista do Prémio LeYa em 2021, “A Última Lua de Homem Grande” é um livro surpreendente, extraordinariamente bem escrito e talhado para que ninguém fique indiferente perante a generosidade, verdade e alcance da sua escrita.

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