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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

OFICINA: "Palavras Cantadas" | Samuel Úria



OFICINA: “Palavras Cantadas”,
por Samuel Úria
Escola de Artes e Ofícios
03 Fev 2022 | qui | 19:00


“Meio homem, meio gospel, mão de fado e pés de roque enrole”, Samuel Úria está, por estes dias, entre nós. Logo mais, no Centro de Arte de Ovar, apresenta-se a solo com as suas “Canções do Pós-Guerra”, título do seu mais recente trabalho. Já ontem, perante uma plateia que incluiu músicos, estudantes e público em geral, o “cantor das patilhas” dirigiu uma oficina intitulada “Palavras Cantadas” na qual, ao longo de duas horas, deu testemunho do empenhamento e seriedade que sempre tem na escolha das palavras que canta. Foi uma “conversa” que teve na escrita dos poemas o seu fio condutor, dirigida por alguém que vive de e para a música e que começou por deixar um aviso sério a todos os presentes: “Não sou o artista mais tocado em lado nenhum para que vocês digam ‘vale a pena ouvir este gajo se queremos chegar a algum lado na vida’. Por outro lado, dando-me o benefício da dúvida, vocês dirão ‘se este tipo não tem sucesso, se calhar temos de fazer exactamente o oposto daquilo que nos disser’ (risos). De uma forma ou de outra, não vai sair daqui ninguém sem aprender nada”.

Foi assim, em ambiente descontraído e informal, que as palavras foram caindo como as cerejas. Samuel Úria falou do seu método de sintetizar aquilo que ouve, que vê ou que lê e de que forma transforma essa informação em canções. Afirmando a subjectividade na forma de viver e sentir uma mesma canção - “para uma pessoa, uma boa canção é um heavy metal muito orquestrado, com os metais a fazerem coisas diferentes e em que o virtuosismo tem que entrar para reconhecermos que houve ali um trabalho especial tanto na composição como na interpretação, para outra pessoa é uma canção punk em que quanto menos souberem tocar um instrumento, quanto mais cuspida for a fraseologia, mais directa a mensagem vai chegar” -, Úria levou as canções para o campo da arte. Do subjectivo ao objectivo, do inconsciente ao consciente, da inspiração ao método, há todo um trabalho de “espeleologia cerebral”, de perceber “de onde vem a inspiração, de como podemos ir buscar mais, de quando podemos avançar para a próxima canção.”

Recuando no tempo a 2009 e ao seu trabalho “Nem Lhe Tocava”, Samuel Úria parte do tema que dá nome ao álbum para explicar a sua postura perante a música: “Se escrever canções fosse uma coisa fácil demais, em que não houvesse desafio, se calhar eu punha de parte; por outro lado, se fosse só dificuldade, se fossem só barreiras que tivesse que ultrapassar, se não houvesse prazer, uma apetência natural para fazer as coisas, então nem lhe tocava.” Encontrar o ponto de equilíbrio naquilo que transforma a música em algo que nos é próximo e natural, mas que, por outro lado, oferece o desafio e o prazer inerente ao processo da escrita de uma canção, eis a primeira dica desta oficina. Outra dica coloca-nos perante o lado ditador da canção, a qual “só está terminada quando ela quiser”. O processo não será simples, tão pouco linear, conforme se percebe da audição de dois excertos musicais que Samuel Úria deu a ouvir, de “dois super-heróis, o Batman e o Super-Homem da escrita de canções”. O primeiro, o mais do que conhecido “Hallelujah”, que exigiu de Leonard Cohen três anos de trabalho (mais tarde, numa entrevista, o canadiano rectificaria este ‘timing’ para quatro anos); o segundo, “I and I”, que Bob Dylan escreveu em quinze minutos.

Entre subjectividades, tempos, estratégias e expectativas, outra dica leva-nos ao encontro da poesia, “simultaneamente o maior amigo e o maior inimigo” de um escritor de canções com preocupações poéticas. As ferramentas estruturais, estilísticas, de métrica e de rima que se escondem na poesia sustentam o trabalho do escritor de canções quando na busca de respostas para “condensar mil ideias numa frase, mostrar-se ou esconder-se de uma determinada maneira, contrabandear uma ideologia, pôr a nu uma desigualdade urgente no mundo e tornar isso suficientemente poderoso através das palavras”. O conselho é claro: “A leitura cuidada e voraz de poesia é uma ferramenta essencial para quem queira fazer canções.” O reverso da medalha está no risco de se criar, com a poesia que se lê, um tipo de habituação a tendências, gostos, ritmos ou a falta deles que, quando transformados em canções, soam mal ou, simplesmente, não funcionam. Poesia e música, hoje de braço dado, amanhã de costas voltadas.

“Na escrita de canções, a aparência da inteligência é tão importante quanto a inteligência. Uma letra de canção dificilmente parecerá inteligente, dificilmente vamos colher ouvidos que nos ouçam com inteligência e com uma exploração mais profunda do que a mera audição de fundo se a aparência for desleixada ou desgrunhada.” Para romper com a aparência de descuido ou desleixo, Samuel Úria sugere evitar as rimas a terminar em “ar”, as rimas no infinitivo com as anástrofes ou a prosódia, a tendência para esticar as palavras para que caibam num determinado compasso. O contraponto é-nos dado com letras tão simples mas tão ricas de sentido e significado como essa balada incrível que Tom Waits dedica à sua mulher, “Johnsburg, Illinois”, e que Úria quis também partilhar com os presentes: “She's my only true love / She's all that I think of, look here / In my wallet / That's her”. A última dica não poderia ser mais assertiva: “As artes alimentam as artes.” Com isto, Samuel Úria convida os escritores de canções ou aspirantes a sê-lo a ouvirem muita música, naturalmente, mas a estarem também disponíveis para absorver as pérolas que se abrigam nas outras artes, da pintura ao cinema, da literatura à escultura ou à arquitectura. Códigos, sub-textos, referências, são comuns a todas as artes e com todas é possível aprender, em todas é possível colher inspiração.

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