TEATRO - MÚSICA: “Assim Devera Eu Ser”
Co-criação e interpretação | Catarina Moura (voz), Celina da Piedade (voz e acordeão), Sara Vidal (voz e harpa), Ricardo Silva (guitarra portuguesa)
Encenação / dramaturgia | José Rui Martins, a partir da biografia “Amália”, de Vitor Pavão dos Santos
Consultoria musical | Amélia Muge
Selecção de poemas e adaptação musical | Amélia Muge, Catarina Moura, Celina da Piedade, José Rui Martins, Ricardo Silva e Sara Vidal (a partir dos poemas de Amália Rodrigues e cancioneiro tradicional português)
Ilustração e animação | Cátia Vidinhas
Produção executiva | Tarrafo - Associação Cultural
Co-produção | CCB / Fábrica das Artes, Teatro Viriato e Cine-Teatro Louletano
Teatro Stephens, Marinha Grande
29 Jan 2022 | sab | 16:00
Criado no âmbito das comemorações do centenário de Amália Rodrigues, “Assim Devera Eu Ser” é um espectáculo cénico-musical encomendado pelo CCB / Fábrica das Artes e dirigido a todas as gerações. Através dos versos, lengalengas e trava-línguas que o atravessam, o espectáculo revela uma Amália menos conhecida do grande público, naquilo que foi o seu labor enquanto criadora e poetisa. A unir estes retalhos encontramos as palavras da artista num desfiar de memórias da infância e da adolescência que nos transportam ao tempo da história da Cigarra e da Formiga, quando se cantava para iludir tristezas e pobrezas. Foi isso que pudemos apreciar na tarde de ontem na Marinha Grande, no bonito espaço do Teatro Stephens, paredes-meias com o Museu do Vidro. Nas vozes e nos instrumentos de Catarina Moura, Celina da Piedade, Sara Vidal e Ricardo Silva fez-se tudo menos silêncio. E também se cantou fado.
Uma lua invade lentamente o palco. Acompanhamo-la com o olhar até se deter bem no centro, enquanto escutamos: “Olha a lua redondinha / Tão redonda coisa rara / Nem lhe descubro a covinha / de cada lado da cara”. O poema é de Amália Rodrigues, a mesma Amália que confessa não saber o dia em que nasceu. “A minha avó dizia que tinha nascido no tempo das cerejas, que vai de Maio a Julho. Escolhi o dia 1 de Julho para fazer anos. Mas depois, mais tarde, quando tive que tirar os papéis para fazer o exame da Escola Primária, vinha 23 de Junho. Resolvi guardar as duas datas.” Assim começa o espectáculo, assim se apresenta a artista. Os próximos três quartos de hora serão frenéticos, como frenéticos parecem ter sido os primeiros anos de vida desta menina que esteve para se chamar Maria do Carmo. Anos de vida numa roda de cantigas na qual o espectador é convidado a entrar. “Alargai-vos raparigas / Que o terreno não é estreito / Quero dar minhas voltinhas / Quero dá-las ao meu jeito.”
“Golondrina con fiebre en las alas / Peregrina borracha de emoción / Siempre sueña com otros caminos / La brújula loca de tu corazón.” Dos tangos de Carlos Gardel, que cantava mesmo sem perceber nada do que dizia, à ida à escola com 9 anos de idade e, logo depois, aos ofícios de aprendiz de bordadora ou aos trabalhos na fábrica de rebuçados, vai um tempo de alegrias, aventuras, algumas “amaliazadas” e muitas cantigas. “Quero cantar para a lua / Deixem-me cantar na rua / Pois foi da rua que eu vim / Vim da rua, vim das pedras / Nada sei das vossas regras / Regras não são para mim”, canta Amália, enquanto fala do pai que tocava cornetim, de não ter brinquedos mas andar sempre com os bolsos cheios de rebuçados, de gostar de cantar na rua, de ouvir as pessoas, as canções dos cegos e os pregões, da professora, “a única pessoa que me tratou bem”, das árvores, flores e bichos que descobria ao passar pela Tapada da Ajuda a caminho da escola: “Minuciosa formiga / Não tem que se lhe diga / Leva a sua palhinha / Asinha, asinha / Assim devera eu ser…”
O espectáculo caminha para o fim. Os pais de Amália estão agora em Lisboa mas a vida continua muito incerta. A mãe vai com Amália e a irmã Celeste vender fruta aos estrangeiros que chegam a Lisboa de navio. Amália aprende as primeiras palavras em inglês: “For me all bad is pêras”. As fitas que passam nos cinemas de reprise enchem-lhe a cabeça de sonhos: “Do que gostava mesmo de ver era aquelas raparigas muito bem arranjadas a serem muito amadas. Pintava-me com papel grosso que quando molhado deita tinta. Fazia umas rosetas na cara, punha uns lenços na cabeça, e punha-me a cantar e a representar frente ao espelho. Tenho o sonho de ser artista”. Amália à vez e à voz, Catarina Moura, Celina da Piedade e Sara Vidal, muito bem acompanhadas pela guitarra portuguesa de Ricardo Silva, ofereceram aos presentes um belíssimo espectáculo que apenas pecou por ser tão curto. Queríamos continuar ali por mais tempo a cantar a “Cabra Cabrita” e o “Bicho-de-Conta”, a bater palmas a compasso, a rir com a Catarina Moura, uma voz de excelência num corpo que respira teatro. Viveu-se um momento delicioso, do qual se saiu com a certeza de termos Amália na voz. Todos nós!
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