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sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

LIVRO: "Anos de Chumbo e Outros Contos"



LIVRO: “Anos de Chumbo e Outros Contos”,
de Chico Buarque
Ed. Companhia das Letras, Novembro de 2021


“Busquei abrigo no Copacabana Palace, onde Pablo Neruda me contou que Romy Schneider também tinha síndrome do pânico. Tudo começou quando ela descobriu que o tio Adolfo, que a sentava no colo e beijava suas bochechas de criança, outro não era senão Adolf Hitler, íntimo de sua mãe. Daí compreendi o ar angustiado com que ela me pediu um cigarro na piscina do hotel. Ficou desolada ao saber que eu não fumava Chesterfield, e o Continental sem filtro que lhe ofereci se molhou com a chuva grossa que só chovia em cima dela.”

Não é correcto dizer que nunca li nada de Chico Buarque. Autor e intérprete de canções que marcam várias gerações, são dele poemas tão intensos e belos como “Caçada”, “Sem Açucar”, “O Que Será (À Flor da Pele)”, “O Meu Amor”, “Folhetim”, “A Banda”, “Construção” ou “Geni e o Zepelim”, que muitos de nós serão capazes de recitar sem hesitações da primeira à última estrofe. Neste início de ano, porém, calhou de sentir vontade de ver Chico Buarque para além das suas canções, elegendo para tal “Anos de Chumbo e Outros Contos”, oitavo livro da “maturidade de Chico”. Conjunto de oito contos ditados ao correr da pena, súmula das vivências e dos sonhos que acompanham Chico Buarque desde a adolescência, o livro revela-se uma agradável surpresa, quer pela diversidade de histórias, quer pelo jeito muito particular de as contar, com leveza mas, sobretudo, com imensa graça.

Detenho-me em “Para Clarice Lispector, com Candura”, um dos contos deste livro. Não o faço por acaso. Ter lido muito recentemente “Todas as Crónicas”, livro onde se reúnem as colaborações de Clarice Lispector com vários orgãos da imprensa brasileira, faz-me ter muito presente a admiração que a escritora nutria pelo cantor, alvo de referências várias nos seus textos. Este conto de Chico Buarque surge em forma de retribuição e agradecimento, mas é também uma homenagem a Clarice. Encarnando a personagem de um jovem aprendiz de poeta a quem a escritora dá guarida, acolhendo-o em sua casa e propondo-se rever os seus poemas, Chico Buarque revela o quanto de dúbio pode haver numa relação. Para quem conhece minimamente Lispector e a sua mundividência, quanto mais não seja pela leitura das crónicas, encontra neste conto uma contextualização muito particular, da mão direita horrivelmente queimada ao retrato de De Chirico, da criada despedida à nova cozinheira de mão-cheia, dos quiproquós com a editora por causa da pontuação ao seu desejo de “alimentar todas as crianças famintas, abrigar todas as criaturas abandonadas do Brasil”.

Embora se perceba que nem todos os contos têm a mesma qualidade, são em número superior aqueles que se revelam preciosos, contribuindo para que o livro seja merecedor de leitura atenta. Entre estes, não posso deixar de destacar “Copacabana”, um conto que nos revela o cosmopolitismo de uma cidade como o Rio de Janeiro nos anos 60 e o “sonho acordado” de um jovem de dezasseis anos que se cruza com Ava Gardner e Richard Burton, Romy Schneider e John Huston, os escritores Pablo Neruda e Jorge Luís Borges. Por outro lado, “O Passaporte” é um caricatural auto-retrato de um Chico Buarque enquanto “grande artista”, a braços com as reacções de um público que o odeia mais do que o ama. Se vemos num conto uma imensa ternura, logo outro nos revela o sentido mais perverso do ser humano. A pureza e a sordidez misturam-se no espaço de um parágrafo, evidenciando um olhar agudo sobre a sociedade, um apurado sentido crítico e um forte domínio da linguagem por parte do seu autor. Ler “Anos de Chumbo e Outros Contos” não será nunca tempo perdido.

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