CONCERTO: “Ocre” | Filipe Raposo
Teatro Aveirense
22 Jan 2022 | sab | 21:30
Ensaio sobre as clássicas cores vermelho, preto e branco, “Øcre” é o primeiro trabalho de uma trilogia na qual Filipe Raposo se propõe tornar reconhecível todo um universo harmónico que reside na cor, bem como o vasto conjunto de cinestesias daí resultantes. Com a pandemia a determinar o cancelamento ou o adiamento de inúmeros concertos de apresentação do álbum, dar a conhecê-lo ao grande público resultou numa caminhada errante, a qual chegou ao fim na noite do passado sábado num Teatro Aveirense particularmente despido de público. Em palco, a sós com o seu piano, o músico ofereceu aos presentes, sob a forma de trechos inspirados e de rara beleza, um conjunto de reflexões sobre o vermelho e as suas variações, associando-o ao fogo, o princípio de tudo, e ao sangue, a essência da vida. Mas também, recuando mil séculos, ao nascimento da arte.
Na sua mistura de ritmos, géneros e estilos, “No Princípio Era o Fogo” abriu o concerto da melhor forma, propondo a visão de um universo carregado de força vital, de energia criadora, aberto num todo caótico feito de um céu riscado por mil relâmpagos, ventos ciclónicos e rios de magma, com tanto de horrível como de belo. Seguiu-se “Blombos Cave”, um tema que remete para uma caverna situada cerca de 300 km a leste da Cidade do Cabo, na África do Sul, o primeiro lugar identificado pelos arqueólogos onde o óxido de ferro foi misturado com osso queimado e óxidos vegetais para produzir o ocre que depois era guardado em conchas. É um tema cujos trechos iniciais são de um lirismo surpreendente, que nos convidam a espraiar a vista pelo espaço em volta antes de penetrarmos nesta caverna onde homens e mulheres aprendem a domesticar o fogo e se entregam à árdua tarefa de sobreviver.
“Mefistófeles”, a peça seguinte, é um precioso divertimento que remete para a busca da verdade e do conhecimento e nos traz os ambientes clássicos do cinema mudo enquanto nos sussurra ao ouvido: “Sou o espírito que deseja eternamente o mal, mas faz eternamente o bem”.
Entre o sagrado e o profano, “Romances e Litanias” é mais um tema precioso, filiado na tradição popular com origem em Trás-Os-Montes e cujo trecho inicial é do mais belo que jamais um piano me ofereceu. “A Um Deus Desconhecido” desce até sul do Tejo ao encontro de Endovélico, divindade céltica ligada à natureza e às colheitas, mas também às bebidas inebriantes. “Ritos e Encantamentos” cruza-se com Zeca Afonso e “Alegria da Criação” para nos dizer, em acordes feitos poema: “Feiticeira / Mãe de todos nós / Flor da espiga / Maldita para tiranos / Amorosa te louvamos / Tens mais de um milhão de anos / Rapariga”. A música de inspiração popular voltou a mostrar-se por inteiro no delicioso “Ó Meu Bem”, um tema açoriano, e “Uncertainly Lost In Stockholm”, tema que faz a ponte com o álbum “Inquietude” (2015) fechou o alinhamento do concerto. No “encore”, Filipe Raposo recuou ao seu segundo álbum, “A Hundred Silent Ways”, oferecendo-nos a sua versão de “Ó Bento Airoso”, desta forma homenageando a cidade de Aveiro onde esse trabalho nasceu em 2013. Foi a cereja no topo do bolo de uma noite mais que perfeita.
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