LIVRO: “Um Amigo Para o Inverno”,
de José Carlos Barros
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Casa das Letras, Junho de 2013
“E também ele, portanto, se atirou ao chão ao ecoar na parada o primeiro silvo das balas; ao sentir-se
(ao ouvir-se)
o varrer da primeira rajada de metralhadora. Mas foi o primeiro a regressar a si e à realidade concreta da cerimónia solene: no meio de gritos e correrias, desmaios e uma confusa movimentação de agentes a puxarem das espingardas e a procurarem máscaras inexistentes no terreiro franco. Leãozinho voou para o gira-discos, bateu descuidadamente no eixo do braço e ouviu-se no altifalante a estridência da agulha a cortar as estrias numa elipse apertada. Um silêncio de manhã imensa poisou então nos telhados, nas ruas, no pequeno largo. Tudo o tempo de um fósforo. Leãozinho assomou de novo à porta, estava branco como a cal da parede do Posto da Guarda, todos o olhavam. E nunca conseguiria explicar a razão de se terem escutado os primeiros acordes do Tango dos Barbudos (precedidos, abrindo a faixa, do silvo das balas de uma revolução distante) quando se esperava que o Hino Nacional
(A Portuguesa)
enchesse a manhã de cerimónia e majestade.”
Até ao anúncio do vencedor do Prémio Leya 2021, há dois meses atrás, o nome do escritor José Carlos Barros era-me completamente desconhecido. À surpresa somou-se a curiosidade aguçada quando percebi que “Um Amigo Para o Inverno”, trabalho de 2013 dado à estampa pela Casa das Letras, fora finalista do Prémio Leya no ano anterior. Assim, enquanto aguardamos o lançamento de “As Pessoas Invisíveis”, tive vontade de conhecer melhor o autor, licenciado em Arquitectura Paisagística, ex-director do Parque Natural da Ria Formosa e ex-deputado da Assembleia da República, através da escrita deste que é o seu segundo romance. E que belo romance. Uma escrita elegante, um vocabulário riquíssimo e um enorme labor descritivo, abrem ao leitor uma sucessão de quadros de enorme beleza visual, centrados no essencial, mas pedindo atenção ao detalhe. Se fosse um filme, seria num preto e branco luminoso. Um filme português, bem entendido!
Fintando linhas cronológicas, a acção atravessa um arco temporal que vai desse longínquo 16 de Maio de 1948 a Outubro de 2011, altura em que “Maria do Rosário conta ao narrador a história da sua vida”. Várias “pistas” levam-nos até Boticas, terra que viu nascer o autor nos idos de 1963. O tempo é o do Estado Novo e da resistência à ditadura, atenta e vigilante mesmo nos meios mais pequenos e afastados dos centros do poder. Onde correligionários das duas facções se acolitam em distintos cafés ou casas de pasto. Onde forçoso se torna tomar partido e onde todos sabem de todos. Onde o longo braço da polícia política chega graças ao bufo de serviço. É neste ambiente de uma tensão constante que vem cair o Sargento Francisco Aniceto Gonçalves, indigitado para chefiar o Posto da Guarda. Naquilo que o militar parecia ver um retiro tranquilo, onde “quase nada acontecia que fosse digno dos livros de registo”, há vultos que se movem a coberto das sombras, manobras intimidatórias, gestos de coragem, conspirações. A solução de um crime em que um homem é brutalmente assassinado pode encontrar-se muito além dum simples ajuste de contas por questões relacionadas com as águas de aviação.
Seguindo os passos de uma dúzia de personagens, misturando-os e confundindo-os, afastando-os entre si para logo os aproximar, José Carlos Barros mostra-nos as linhas com que se cose um romance. Na posição privilegiada do narrador, é dele a responsabilidade de “partir e voltar a dar”, deixando o leitor (apetece-me escrever “o espectador”) suspenso dos lances de sorte e azar a que chamamos destino. Nesta revisitação de um lugar e de um tempo que muito deve às suas memórias, adivinha o leitor uma singela homenagem aos valores da tradição, mas também àqueles que se bateram pelos ideais da liberdade e da democracia. Com um sentido do ritmo verdadeiramente notável, o autor guia-nos através de um verdadeiro labirinto, começando pelas ruas e praças, pelas casas, até se instalar no interior de cada um, com tudo aquilo que mostra e o muito mais que procura esconder. O final, de uma beleza imensa, vem dizer-nos que há marcas que não se apagarão nunca, mas que o amor triunfa sobre todas as coisas. Uma absoluta surpresa e um excelente livro para fechar da melhor forma um Janeiro farto em leituras.
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