LIVRO: “A Caverna”,
de José Saramago
Ed. Editorial Caminho, Novembro de 2000
“A luz trémula da lanterna varreu devagar a pedra branca, tocou ao de leve uns panos escuros, subiu, e era um corpo humano sentado o que ali estava. Ao lado dele, cobertos com os mesmos panos escuros, mais cinco corpos igualmente sentados, erectos todos como se um espigão de ferro lhes tivesse entrado pelo crânio e os mantivesse atarraxados à pedra. A parede lisa do fundo da gruta estava a dez palmos das órbitas encovadas, onde os globos oculares teriam sido reduzidos a um grão de poeira. Que é isto, murmurou Cipriano Algo, que pesadelo é este, quem eram estas pessoas.”
Depois de obras tão estranhas e perturbadoras como “Todos os Nomes”, “Ensaio Sobre a Cegueira” ou “A Jangada de Pedra”, é sem surpresa que abraço “A Caverna”, primeiro romance “pós-Nobel” de José Saramago, revisitação aguda e intensa de futuros imaginários. Tão pouco surpreende que esta distopia tenha um forte cunho de actualidade, o futuro feito presente, o sentido do dever e da disciplina, da obediência cega aos ditames da ordem, de um mundo sob vigilância atenta e permanente, fortemente instalado nas consciências e nos actos de cidadãos tornados acríticos por decreto. É, de novo, o lado activista de Saramago a falar mais alto, a abrir-nos as mentes para os riscos de uma sociedade cada vez mais conforme ao deus-mercado e aos ditames da globalização, que esmaga as famílias enquanto unidades de produção por excelência, que instaura um estado totalitário e faz da tecnocracia a única forma de poder.
É pelo fim de uma verdadeira civilização das desigualdades e contra a prisão neoliberal imposta pelos mercados financeiros que José Saramago se insurge. Serve-se, por um lado, dos três elementos de uma família “remediada”, pai, filha e genro, aos quais se vem juntar o cão Achado; do outro lado encontramos os “peões” de serviço daqueles que detêm o poder, dos agentes económicos às autoridades policiais. A narrativa pede-nos que acompanhemos os passos de Cipriano Algor, uma vida de volta da roda de oleiro, de repente cerceada pelas novas tendências ditadas “pelo aparecimento de umas louças de plástico a imitar o barro, imitam-no tão bem que parecem autênticas, com a vantagem de que pesam muito menos e são muito mais baratas”. É este o ponto de partida de um romance que faz da contenção um dos seus grandes atributos, se rege por um ritmo lento e insidioso, toca o leitor nos seus pontos mais sensíveis e lhe dá a estocada final ao lembrar-lhe a desvalorização crescente do trabalho e dos trabalhadores, as desigualdades sociais e a precariedade, a dependência dos mercados externos e a austeridade.
Seduzindo o leitor com a liberdade da sua escrita, imiscuindo-se na acção e tomando ele próprio as rédeas da narrativa para lembrar que estamos no domínio da ficção, José Saramago faz de “A Caverna” um exemplo acabado da arte de bem escrever. A delicadeza dos diálogos entre pai e filha exalta a sua cumplicidade no torvelinho de emoções que as decisões radicais sempre acarretam. Já as conversas entre o oleiro e aqueles que detêm o poder de aceitar ou recusar a sua mercadoria são secas, impessoais, marcados pela distância, acentuando as diferenças entre a tradição e a modernidade, obrigando o leitor a tomar partido. No centro desta relação de forças encontramos o genro e o cão, boa e má consciência à vez de um mundo em acentuado declínio. O que Saramago nos vem dizer é que não podemos esperar que as coisas se arrastem e tudo venha a resolver-se por si só. Não há tempo a perder; é urgente passar à acção. Ou entendemos que a liberdade de cada um é um valor que não tão preço ou seremos como esses corpos, cobertos com panos escuros, presos para sempre numa caverna, tendo como única visão a dança bruxuleante das suas próprias sombras.
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